Cronistas

Procurando o futuro – I

– como se foi fazendo a actual burguesia angolana (*)

Em Angola, onde a estrutura produtiva é de reduzida dimensão, impera uma poderosa casta de super-ricos a par de extensa miséria que atinge a esmagadora maioria da população Neste momento regista-se um evidente voluntarismo dos responsáveis políticos para incentivar o investimento privado no país. Interessa saber das disponibilidades e capacidades dessa elite em responder àquele desiderato.

Daí ser importante saber como se formou essa classe e qual foi o seu desempenho, ao longo destes quarenta e dois anos de independência.

Na Angola tornada independente em 1975, o MPLA, partido que conquistara o poder, agia sem qualquer travão, quer por ausência de vozes discordantes no seu seio, esmagadas pela repressão, quer por não existir oposição externa, após a liquidação militar dos outros dois partidos, a FNLA e a UNITA.  

O novo poder, dono e senhor de todo o país, tendo desmantelado a economia colonial, não manteve em actividade os sectores produtivos e a rede de distribuição. Em breve, a economia reduzia-se a empresas estatais paralisadas, cheias de funcionários que para ali tinham sido nomeados, graças à sua fidelidade ao partido (então ainda Movimento) no poder. A atenção governativa ficou centrada no petróleo, enorme fonte de receitas que não entravam no erário público, antes eram canalizadas para a presidência que ordenava a sua aplicação conforme os interesses políticos e com critérios nunca estabelecidos formalmente. Parte das receitas do petróleo passou a ser utilizada na importação dos géneros alimentícios e de outros produtos, mas a sua importação e distribuição eram feitas de maneira descoordenada e desorganizada, o que facilitou de imediato práticas de corrupção que aceleraram a degradação da situação. Vários responsáveis e funcionários desviavam os produtos para o mercado clandestino, cuja máxima expressão viria a ser, mais tarde, o Roque Santeiro. Não tardou, pois, a faltarem os géneros de primeira necessidade à população, a formarem-se imensas bichas nas «lojas do povo», com prateleiras vazias, onde se lutava por um pouco de arroz, óleo e sal, inúmeras vezes sem sucesso. Entretanto, eram criadas lojas para diplomatas e cooperação estrangeira, cheias de todos os produtos, onde se pagava em dólares, e também lojas para os dirigentes políticos e chefias administrativas, onde estes encontravam variado abastecimento importado. Enquanto tudo isto sucedia, o chefe supremo afirmava nos seus discursos que “o importante é resolver os problemas do povo”.

À medida que os problemas do povo aumentavam com a falta de comida, a assistência na saúde a escassear, as escolas a degradarem-se, crescia o número de pessoas desfrutando de benesses e viagens ao estrangeiro numa roda-viva de colocação de dinheiro amealhado no comércio clandestino e ou em comissões de negócios estatais. Dessas viagens regressavam com inúmeras malas e caixotes recheados de electrodomésticos e artigos de luxo. Desta maneira e na candonga generalizada nas cidades, sobretudo Luanda, estava a fazer-se a nova «acumulação de capital».

Enquanto assim “se resolviam os problemas do povo” crescia o aparelho de estado sustentado pelas receitas do petróleo. Aumentavam os efectivos das diversas forças policiais e do exército, multiplicavam-se as promoções e graduações de oficiais, estabeleciam-se privilégios e mordomias para os seus quadros superiores: viaturas, subsídios vários, lojas especiais, moradias. O mesmo sucedia com os membros do governo e quadros do partido único para já não falar dos quadros das empresas estatais, recrutados ou nomeados na base da fidelidade partidária. Este sistema em que o servilismo se sobrepunha ao mérito profissional ou cívico, sistema fechado em si, sem qualquer vigilância ou travão da sociedade (calada por feroz repressão de que a DISA é o mais tenebroso exemplo), possibilitou o aparecimento e extensão da corrupção. Rapidamente, utilizando os mecanismos do estado, começaram a enriquecer numerosos dirigentes dos mais variados escalões através de comissões recebidas por encomendas de equipamentos ou serviços, ou até de desvio de mercadorias (principalmente nos portos), ou de contratos de obras.

Convém aqui referir que tanto a UNITA como a FNLA teriam possivelmente feito o mesmo, dada a natureza autocrática das suas chefias. E a prova foi o que fizeram em 1975 e início de 1976 nas zonas de Angola que ficaram sob o seu controlo. O que diferencia o MPLA destes movimentos é que este possuía e teve à sua disposição muito mais quadros, alguns dotados de apreciável saber político, administrativo e gestionário. Mas, tal como o fizera na luta de libertação, a direcção do Movimento continuou – agora na condução do País – a desperdiçar pessoas e oportunidades de agir com eficácia e sem inúteis perdas de ordem humana e material.

Ficaremos hoje por aqui. Na próxima crónica continuaremos a desenvolver este assunto e abordaremos a questão do papel da nossa burguesia no futuro desenvolvimento do país.

(*) nesta crónica utilizei material de um texto do meu livro ANGOLA – CONTRIBUTOS À REFLEXÃO, Edições Colibri

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