Editorial

A Doutrina Zedu

Uma doutrina é um conjunto de princípios que servem de base a um sistema, que pode ser literário, filosófico, político ou religioso. Doutrina também pode ser uma fonte do direito. Para que uma doutrina seja reconhecida como uma formulação de princípios coerentes, ela deve ter um âmbito internacional, geral, significativo e inovador. Na história da política externa dos EUA apenas duas doutrinas são reconhecidas como tal. A Doutrina Monroe, proclamada em 1923 pelo Presidente James Monroe, e que ainda hoje vigora, era dirigida contra a Europa da Santa Aliança e estipulava que qualquer tentativa europeia de “estender o seu sistema político a uma qualquer porção deste hemisfério é perigosa para a nossa paz e a nossa segurança”. A partir de fins do século XIX teve uma formulação mais directa advertindo que “as Américas fazem parte da zona de influência dos EUA”. A invasão do Panamá por George Bush (pai), em Dezembro de 1989 culminando na prisão e extradição do general Noriega é um exemplo da aplicação da tal doutrina, que terá sido um pouco “descartada” pelo Presidente Barack Obama, mas que agora o Presidente Donald Trump pretende retomar e com determinação, basta olhar para os casos da Venezuela, a relação com Jair Bolsonaro e com Ivan Duque Márquez da Colômbia, sem esquecer a Argentina.

A Doutrina Truman foi formulada em 1947 e marcou todo o período da Guerra Fria. Perante a pressão da URSS sobre a Grécia e a Turquia, os EUA decidiram começar a “travar” à expansão soviética. Truman lançou a tal doutrina numa sessão plenária do Congresso a 12 de Março de 1947 e em Junho, deste mesmo ano, era lançado o famoso Plano Marshall que se tornou um dos pilares da política norte-americana durante o período da Guerra Fria. Embora apenas duas doutrinas sejam reconhecidas como tal (pelo seu âmbito internacional e geral), os EUA tiveram uma terceira doutrina com um âmbito mais restrito, mas que deve ser considerada como tal: a Doutrina Reagan. Foi formulada no discurso de 9 de Maio de 1982, visava atacar os regimes comunistas do Terceiro Mundo e em que os EUA passariam a apoiar activamente “os combatentes da liberdade”. Por todo o mundo a doutrina foi aplicada no Afeganistão, em Angola (com o apoio declarado à UNITA), fracassou na Nicarágua. Do outro lado, e já na fase final da Guerra Fria também, se falou da Doutrina Brejnev, pela qual a URSS se arrogava o direito de ingerência em todos os países socialistas. Os países do bloco socialista tinham uma soberania limitada e não podiam reformar o seu regime sem prévia autorização de Moscovo – a intervenção na Checoslováquia em 1968 foi bem o início dessa doutrina.

Em Angola o que se procura compreender é como é que alguém se mantém quase quatro décadas de poder absoluto sem ter criado a sua própria doutrina? Não é possível. José Eduardo dos Santos teve a sua doutrina e os seus doutrinários. Não foi inspirada e nem teve o mesmo âmbito e alcance das doutrinas de Monroe ou Truman, nem sequer teve motivações como a de Reagan ou a de Brejnev. A Doutrina Zedu foi uma espécie de versão moderna de Luís XIV de França, o Rei-Sol, que, com a teoria do “direito divino”, acreditava que todo o poder da nação estava concentrado na sua pessoa. A Doutrina Zedu tal como a de Luís XIV tinha uma divisa bem patente: “O Estado sou eu!” A grandeza, as conquistas, os feitos da Nação identificavam-se com a figura do Chefe Máximo. Qualquer atleta, artista, académico ou selecção que vencesse uma competição internacional  ou recebesse um prémio internacional não o dedicava ao Estado mas sim à figura que personificava este mesmo Estado: “Sua Excelência, o Arquitecto da Paz, o Líder da Visão Estratégica, o Camarada-Presidente José Eduardo dos Santos”. Era assim porque havia uma doutrina e doutrinários que faziam questão de que se cumprisse escrupulosamente a doutrina. E segundo a tal doutrina, até a paz deixou de ser uma conquista de todos os angolanos passando a ser apenas obra e graça do seu “arquitecto”.

É a tal Doutrina Zedu que faz com que um dos seus defensores e doutrinários, o general José Maria em pleno tribunal insista em dizer que os 2 milhões de dólares que recebeu para “reescrever” a história da Batalha do Cuito Cuanavale não lhe foram dados pelo Estado, mas pelo Presidente José Eduardo dos Santos, porque, na sua visão, o Presidente José Eduardo dos Santos não era apenas a personificação do Estado, era algo superior ao próprio Estado. Estamos mesmo a acreditar que um Presidente que mandou prender um grupo de 17 jovens por estarem a ler livros, ia tirar do seu próprio bolso a quantia de 2 milhões de dólares porque estaria interessado em deixar “um legado histórico aos jovens” do seu país? A doutrina criava condições para a existência de um grupo restrito de figuras, além do próprio Presidente, personificação do Estado, que falavam e mandavam em nome do Estado. Criou-se durante anos uma “confusão” entre a figura do PR como representante do Estado e José Eduardo dos Santos, como sendo esse mesmo Estado e, agora, a confusãode se o dinheiro foi entregue pelo Estado ou pelo cidadão enquanto tal. O poder absoluto também comete erros absolutos e absurdos. 

A Doutrina Zedu, afinal, o que ambicionava não era uma sociedade mais justa. Desejava sim uma sociedade onde o seu ego e os “dos seus” pudesse brilhar. Potenciou uma pequena burguesia que se aburguersou ainda mais e que se foi demarcando cada vez mais do chamado Zé Povinho. O importante é criar centros interpretativos para compreender e estudar as batalhas de Mavinga, Cuito Cuanavale, o massacre de Cassinga, o 27 de Maio de 1977, o próprio período de governação dos Presidentes Neto e José Eduardo dos Santos, as lutas para a libertação nacional, a própria história do MPLA, que precisa de ser “reescrita”, pois agora ficou-se a saber no congresso extraordinário, que João Lourenço não é o seu terceiro presidente mas sim o quinto presidente. Um trabalho de tamanha relevância e importância política como a batalha do Cuito Cuanavale, no nosso país estava mesmo sob responsabilidade absoluta do general José Maria, não se permitindo que outros militares, historiadores e jornalistas tivessem a “ousadia” de o fazer, sob pena de “punição severa”. A doutrina caiu, os doutrinários andam por aí, uns “exilados”, outros a enfrentarem as barras dos tribunais e alguns ainda metidos na nova governação aguardando que sejam criadas as condições para a proclamação de uma nova doutrina. Aguardemos que a procissão ainda vai no adro.

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