Editorial

A falta de diplomacia na hora da despedida

A circular do Ministério das Relações Exteriores, MIREX, sobre o fim das comissões de serviço “intermináveis”, é uma medida com que concordo, que peca por ser tardia e que espero seja extensiva a todos diplomatas sem excepcão. Durante anos a diplomacia serviu também de espaço para acomodação de políticos e militares em reforma ou perto disso. Houve comissões de serviço em embaixadas e postos consulares que pareciam intermináveis e diplomatas que se consideravam inamovíveis. Em Dezembro de 2017, Manuel Augusto, Ministro das Relações Exteriores durante um encontro de cumprimento de fim de ano com funcionários do MIREX, disse: “Nós temos algumas embaixadas cuja gestão não nos dá nenhum motivo de orgulho. Colegas nossos, embaixadores, entendem o seu papel de gestores de missões diplomáticas como se fossem as suas coutadas, se fizessem bem as coisas? Menos mal. Mas nós temos situações vergonhosas e outras até dramáticas”, um reparo bastante revelador e assumido pelo próprio chefe da diplomacia angolana.

Comissões de serviço muito prolongadas, além de não respeitarem os princípios da rotação, acabam também criando vícios, acomodam e resultam sempre em experiências danosas, em matéria de gestão administrativa, financeira e até mesmo em termos de gestão do pessoal e de relações humanas. É um exagero, para não dizer um absurdo ver um cônsul que fica uma década à frente de um posto consular ou um embaixador chefiar uma missão diplomática durante 15 anos ou quase 20 anos. E é preciso limitar as comissões de serviço do topo à base, sem dualidade de critérios, sem preferências ou amiguismos. Mas também é preciso que o MIREX, melhore os sistemas e os mecanismos de rotação de diplomatas e funcionários, pois ainda se verificam casos em que depois de exonerados, os diplomatas ou funcionários da instituição ainda permaneçam nas missões diplomáticas e postos consulares vários meses devido a dificuldades de implementação do ainda pouco eficaz sistema de rotação, com a agravante de o próprio MIREX estar a viver uma situação financeira pouco confortável e que não permite “esticar-se” muito. Aí é legítimo que se levantem algumas questões: Onde é que o MIREX vai arranjar dinheiro para cobrir as rotações dos seus quadros? Há missões diplomáticas e postos consulares cujo funcionários estão com salários em atraso e a instituição está em dívida com os mesmos, como ultrapassar isso? Um embaixador ou um cônsul que sabe que existe uma lei e não a cumpre, resultando isso em prejuízos para os funcionários e danos para a imagem da instituição não devia ser também responsabilizado?

Penso que a referida circular peca pela extemporaneidade na questão do ónus do pagamento das despesas de dependentes, quando alerta os funcionários da instituição para não matricularem os seus dependentes no ano lectivo 2019/2020, uma vez que “ser-lhe-á dada por finda a comissão de serviço, nos termos do Estatuto do Diplomata” e adverte mesmo que “se os funcionários matricularem os seus dependentes, o ónus das despesas daí decorrentes será da inteira responsabilidade dos mesmos e, em consequência, as missões diplomáticas e os postos consulares estarão isentos de serem responsabilizados por despesas resultantes do incumprimento”. Uma vez que o ano lectivo em muitos dos países onde estes funcionários estão colocados já teve início em Setembro e já matricularam os seus dependentes, tendo só em início de Outubro o MIREX feito a comunicação oficial, e imputa-lhes o ónus por uma situação cujo dever de informação é de sua responsabilidade? Será que os chefes das missões diplomáticas e os postos consulares vão clarificar o MIREX sobre as realidades em que vivem ou vão cumprir escrupulosamente a referida orientação sem emitir um argumento em defesa dos seus funcionários? 
Além de limitar e concluir as comissões de serviço “intermináveis”, o MIREX faria um bom exercício se procurasse averiguar como terminam muitas delas. É um verdadeiro calvário e em alguns casos os relatos parecem um enredo de um filme de terror, o que muito diplomatas e funcionários vivem quando termina a sua comissão de serviço no exterior. O que vivem é uma verdadeira deportação e humilhação depois de anos a servir o país. Por isso afirmo que há entre nós diplomatas que não conseguem ser “diplomatas” com os seus próprios colegas.

A carreira diplomática é uma das mais nobres e gratificantes formas de servir o país. Quando os diplomatas ou outros funcionários do MIREX são nomeados/indicados para desempenhar funções junto de uma missão diplomática ou de um posto consular é porque lhe são reconhecidas valências, competências pessoais e profissionais, bem como outras qualidades para exercer as funções, logo não faz sentido (salvo casos de gestão danosa e outras irregularidades) que se trate de forma pouco diplomática, pouco profissional, pouco ética e até desumana, alguém que tenha exercido com brio, zelo e dedicação as suas funções. A diplomacia está também nos detalhes, nas atitudes e nos comportamentos. E é nestes detalhes que nos vamos apercebendo daquilo a que chamo “Falta de diplomacia na hora da despedida”, praticada por chefes de missões diplomáticas e postos consulares aos seus colegas. Há caso de denúncias de funcionários que depois de exonerados e terminada a comissão de serviço, e enquanto aguardam o cumprimento do processo de rotação, acabam de ser ver privados de direitos plasmados no Estatuto do Diplomata. São privados da remuneração salarial, ficam privados de água, luz, gás nas residências, corte de telecomunicações e há até quem acabe despejado do imóvel que lhe fora atribuído, o transporte para Luanda do contentor com os pertencentes que deviam ser “porta a porta” acaba por ser transformado num “porta a porto comercial”. É um tratamento pouco digno e humilhante e em que nada prestigia a nossa diplomacia. Já dizia um diplomata que esteve quase seis meses em algumas das situações que descrevi: “A nossa diplomacia em muitos casos sabe ser uma má mãe e boa madrasta.”
Discutem-se muito o custo da decisão, da atitude mas não se olha para o custo da negação. A negação do outro na nossa diplomacia é praticada ao mais alto nível, onde para alguns é um prazer negar direitos e regalias aos colegas e subordinados. A negação para eles é um mecanismo de defesa e demonstração de autoridade. O indivíduo não conta, só as estruturas interessam. Diplomatas ou chefes que ao invés de comunicarem com os seus colegas e subordinados vão dando “toques”, ao invés de falarem vão mandando bocas, em vez de irem aos assuntos vão mandando “indirectas”, ou quando os interlocutores não lhes agradam, não são da sua conveniência, etnia ou até cor partidária não mexem uma palha e os “ignoram com sucesso”.

Portanto, a forma como terminam as comissões de serviço, e ainda o que diplomatas e outros funcionários passam depois de exonerados é de loucos e contando ninguém acredita. Há mesmo muita falta de diplomacia na hora da despedida. É um “Adeus a hora da largada” muito diferente daquele que Agostinho Neto imortalizou nos versos do tal poema. Talvez esteja a faltar alguma inspiração humana e poética à nossa diplomacia é a alguns diplomatas. Talvez assim passemos a ter mais diplomacia, humanismo, cortesia, respeito e um certo profissionalismo na hora da despedida.

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