Cronistas
As pedaladas da vida

Há umas semanas comprei bicicletas para os meus filhos Guilherme e Gabriel, de 7 e 5 anos respectivamente . Aos sábados e domingos, andar de bicicleta tem sido uma das suas maiores prioridades e diversão . Uma vez que vivemos no Lumiar, temos o privilégio de ter bem perto de nós, o parque da Quinta das Conchas, um lugar com excelentes condições para se andar de bicicleta. É bonito vê-los entretidos a ” radiografar” este novo artefacto de duas rodas que os leva a explorar o parque e até fazer amigos de duas rodas. Tudo isso sob o olhar atento e vigilante de um país zeloso. A minha esposa e mãe deles, a Natacha, também vai apreciando o cenário todo e já prepara a sua estreia nestas lides, uma vez que ela ainda não sabe andar de bicicleta.
Andar de bicicleta é uma das maiores metáforas para viver a vida. É algo que tem a ver com o sentido da vida e que leva a nossa vida a ter um outro sentido . Aprender a andar de bicicleta tem si uma sensação de liberdade e é como se tivéssemos acabado de aprender a voar. Voar tal como pedalar é sentir -se livre , leve e solto. É o vento que nos toca o rosto, a visão do espaço envolvente, dos encontros com aqueles que tal como nós andam de bicicleta . Após o primeiro dia a dirigir uma bicicleta, é como a realização de um sonho inevitável. Através de uma bicicleta somos capazes de montar vários sonhos . A realização de um sonho resumido num quadro, um selim , dois pneus e etc, pode ser bastante redutor mas é muito revelador.
A jornada da vida é muitas vezes como a de um homem andando de bicicleta. Ele pega na bicicleta e começa a pedalar. Começa um exercício de precisão e de equilíbrio em que se ele parar de pedalar não avança. Se ele não se move , ele cai . É preciso pedalar para estar em movimentos. São como as pedaladas da vida . Quando se aprende a andar de bicicleta começa também o início de um novo ciclo de vida.
Quando mais novo um dos meus sonhos era ter a minha própria bicicleta. No bairro da Samba em Luanda onde vivia, não eram muitos os ânimos que tinham o privilégio de ter uma bicicleta. Como a necessidade aguça o engenho lá íamos fazendo umas trotinetes e o assunto ficava arrumado por uns tempos. Mas o nosso bairro viu nascer e crescer, o maior ídolo da bicicleta da rapaziada. Um jovem de seu nome: Amadeu Paiva. Este era o melhor e maior de todos, não havia igual. Quando surgiram as “Bê-Emê- Xis” ou simplesmente BMX e o filme intitulado “os bandidos da BMX”, este Amadeu Paiva simbolizava toda a arte e destreza dos actores do filme. Ele era a nossa maior referência em termo de ciclismo amador e até mesmo profissional.
Tendo se iniciado aí na zona da Zimba onde vivia, o Amadeu Paiva tornou- se um ciclista profissional e vencedor de vários torneios em Angola. Quando as corridas de ciclismos passassem pela nossa zona, era todo o mundo a gritar o seu nome. Ele mudou a forma da miudagem olhar e tratar de uma bicicleta . Todos queríamos ter uma bicicleta e sermos craques como o Amadeu Paiva.
A primeira bicicleta que tive e na qual dei as primeiras pedaladas, foi uma bicicleta colectiva. Havia um rapaz mestico e com mais uns cinco ou seis anitos que eu, o Kituxi que andava há meses a tentar montar uma bicicleta. Eu e mais uns amigos acabamos sendo os seus ajudantes, colaboradores e até patrocinadores . Como o Kituxi tinha alguns conhecimentos de mecânica porque o pai era camionista, lá foi mais fácil. Lá juntamos dinheiro e compramos o quadro, o selim, os pneus e outros acessórios .
Num período de um mês tínhamos a nossa bicicleta. Uma bicicleta de sociedade. Eu e outro amigos tínhamos dois dias na semana para ficar com a bicicleta, sendo que o Kituxi ficava com três dias na semana, afinal tinha sido ele o mentor de toda a estratégia. E foi com o Kituxi que aprendi a andar de bicicleta . Como éramos todos adeptos do D’ Agosto foi unânime atribuir o nome de “Ametista” a bicicleta. Era este o nome atribuído a novo autocarro da equipa de futebol do D’ Agosto.
Realmente hoje vejo nos meus filhos aquilo que eu vivi há uns 30 anos . Isto de acordar e ver a bicicleta que está à porta do quarto. Esquecer o horário das refeições por estar andar de bicicleta ou ” Bina” como também era tratada na gíria . Para o ano de 2018 temos um desafio cá em casa : o de comprar mais uma bicicleta e ensinar a minha esposa Natacha a andar de bicicleta .
Aos 40 anos de idade, a minha Natacha vai enfrentar um novo desafio. Um desafio aliciante e bastante libertador. Os ingleses dizem que a vida começa aos 40 anos e ela vai nesta idade começar umas novas pedaladas na sua vida . Que sejam pedaladas para novos descobrimentos, para um novo sentido de vida . Que sinta a energia e a pureza de coração de quem aprende a andar de bicicleta. Vai adquirir a linguagem e o civismo próprio dos ciclistas (muito diferente ao dos automobilistas). As jornadas da vida são muitas vezes vividas com a intensidade , equilíbrio e precisão das pedaladas numa bicicleta. Porque tem muita vida, alegria e liberdade nas pedaladas de uma bicicleta.