Cronistas

A Transumância

De tanto nomadizar sinto-me nomada em qualquer lugar e não vejo mal nisso, nem me preocupo com isso, exceto quando por isso sou discriminado. Aliás, habituei-me tanto ao nomadismo quanto à discriminação. Perante esta estou sempre em estado de revolta. Há algum tempo que não sei onde é minha casa mas também não me sinto perdido. Conheço bem os caminhos, aprendi na vida de luta constante as grandes noções de orientação. Orientação no sentido geral : físico, moral, de princípios e de reconhecer a léguas quem nos discrimina, quem nos quer dominar. Orientação no sentido de não ter esquecido como se resiste.
Talvez por tudo isso, sempre acompanhei com interesse as formulações de crioulidade, primeiro perfil cultural do que hoje se chama cultura global, ou seja, resultante do encontro ou choque (mesmo brutal) de culturas. Seja com for, no mundo de hoje, o numero de pessoas com estilos de vida e sistemas de valores semelhantes, aumentou muito e em breve serão a maioria da humanidade. Ainda bem.

Daí ser importante ter em conta analises recentes sobre afropolitismo ou simplesmente cosmopolitismo. A primeira destas palavras foi lançada pelo meu velho companheiro de Dakar, Achilles Mbembe e a segunda vem do Kant, tendo no continente um grande teórico: Kwame Anthony Appiah. Uma vez em Durban (África do Sul) vi um anuncio com o slogan de “esta é uma rádio com afritude”. Supera as teorizações de base racial e nunca mais esqueci.

Durante anos da luta pela independência eu não tinha nenhum passaporte. Era refugiado e circulava com um salvo conduto que ninguém respeitava; depois por curto periodo recebi um titulo de viagem do ACNUR, até que o Senegal me deu um passaporte e, como era mais discreto, a Mauritânia deu-me outro que usei até ao 25 de abril. Naquela luta era fundamental ser discreto, a vida dependia disso.

Hoje tenho dois passaportes e tenho direito a um terceiro. Felizmente que existem estas possibilidades, porque estamos num mundo em que os surtos de xenofobia, etnicismo ou racismos vários podem atacar a qualquer momento e, se têm poder, até negam direitos de cidadania. Lembro-me sempre do Alassane Ouatara, hoje presidente da Costa do Marfim, a quem negaram nacionalidade marfinense, porque os pais nasceram no Burkina Faso. Só corrigiram depois duma feroz guerra civil.

Há uma conferência internacional designada como afro-luso-brasileira de ciências sociais. É esse o meu estado de espírito, inclusive pela inserção profissional numa das ciências sociais.

Acredito que a minha ligação afetiva ao Cunene também decorra de tudo isso. A transumância material cria uma transumância cultural e muitos dos nosso compatriotas da área nem sabem exatamente onde nasceram; a fronteira, de tão artificial, chega a ser ridícula e o povo dali faz tudo para ignorá-la.

Então, estamos perante duas atitudes no mundo – África incluída – opostas e em choque. Os que têm mais ligação a este ou aquele lugar mas vêm o mundo como casa comum e os que afirmam poderes ou frustrações ou complexos na base da negação do “outro” . Acabo de ler na revista francesa “Esprit” – a única publicação que tento acompanhar (nem sempre consegui) desde há meio século – que, na Europa do Leste ao entrarem para a União Europeia esperavam turistas e agora recebem refugiados. Claro que os turistas aumentaram se compararem com o período soviético, mas parece que querem mais: o turista trás dinheiro e em breve vai embora. Solidariedade humana só pensaram nela quando precisaram…

Não contem comigo para tratar os outros como turistas e não confundam nomadismo ou transumância com turismo.

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