Editorial

A via-sacra de Rui Ferreira

Circulou nas redes sociais, um documento em que o juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira, convocava os juízes conselheiros para “uma sessão extraordinária e urgente do Plenário”,
a realizar hoje, quinta-feira, 3 de Outubro pelas 9h. E ponto dois deste documento fala em: “informação; apresentação do juiz conselheiro presidente”. O referido documento está a ser visto como a crónica de uma demissão anunciada. O Plenário de hoje no Tribunal Supremo está a criar expectativas e pode ser bastante revelador.

Rui Ferreira que na qualidade de juiz conselheiro presidente do Tribunal Constitucional proclamou a 26 de Setembro de 2017, eleição do Presidente João Lourenço e no seu discurso falou de uma “via expressa” que se tinha aberto para a governação do novo Presidente da República. E Rui Ferreira seguiu também a sua própria “via expressa” ou “via-sacra” para ser mais específico. A tal via-sacra começou a 20 de Fevereiro de 2018 quando o chefe de Estado João Lourenço deu posse aos cinco juízes conselheiros do Tribunal Supremo, que o próprio João Lourenço designou sob proposta do Conselho Superior da Magistratura Judicial. Rui Ferreira foi um dos cinco juízes conselheiros empossados , juntamente com Norberto Capeça, Aurélio Simba, João Pedro Fuantoni e Anabela Vidinhas. O concurso público curricular para o preenchimento das cinco vagas para juízes conselheiros do Tribunal Supremo foi aberto a 20 de Novembro de 2017. A 2 de Março de 2018, uma nota da Casa Civil do Presidente da República dava conta da nomeação de Rui Ferreira para o cargo de juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo, sendo que a nomeação tomou “em devida conta a proposta do Conselho Superior da Magistratura Judicial”.

Tempos depois surgiram denúncias de juízes conselheiros segundo as quais Rui Ferreira chegou a juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo “sem ter sido ouvido o Conselho Superior da Magistratura Judicial”, que tinha havido manipulação e que o Presidente da República, João Lourenço, fora enganado quando o nomeou para o cargo. Na matéria com o título: “Juiz Ilegal: A controversa nomeação de Rui Ferreira”, o site Maka Angola de Rafael Marques conclui: “Em resumo, há uma ilegalidade na origem do concurso que levou a que foi Rui Ferreira fosse nomeado juiz conselheiro do Tribunal Supremo. Na verdade, esta nomeação é contrária à lei, uma vez que não existia qualquer vaga no Tribunal Supremo a ser preenchida por juristas de mérito”, acrescentado ainda que a confiança dos cidadãos na Justiça, a credibilidade dos juízes e das instituições e até mesmo mesmo o Estado democrático e de direito ficava beliscado com os processos de nomeação de Rui Ferreira (primeiro como juiz conselheiro e depois como juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo). Avançando mesmo que se “o Presidente da República pode, se quiser, após a certificação da ilegalidade dos actos que foi induzido a praticar, considerar os referidos actos nulos com todos os efeitos dai recorrentes”, afastando a questão do princípio da inamovibilidade, que é um elemento constitutivo da função de magistratura, afirmando que “só é inamovível quem é legalmente nomeado, o que não foi o caso”.

Além da contestação interna de sectores dos tribunais Supremo e também do Constitucional, Rui Ferreira viu o seu nome surgir no caso Arosfram, após denúncia do empresário Kito Dias dos Santos em entrevista à Rádio Ecclesia. Foi o mote para a publicação de documentos confidenciais e até comprometedores nas redes sociais, para o surgimento de notícias e acusações contra ele em várias plataformas digitais, havendo até cartoons, feitos a ridicularizar a sua imagem e espalhados de forma viral. A sua vida pessoal/familiar começou a ser vasculhada e a sua vida profissional escrutinada. Procurando mostrar estar alheio e imune a tudo isso, Rui Ferreira foi fazendo um tour pelo país inaugurado novos tribunais, em acções que apesar de um certo destaque na imprensa pública não foi suficiente para minimizar os “estragos” que já estavam feitos. No dia 14 de Julho deste ano, o site Angonoticias fazia surgir o título: “Rui Ferreira acusa general Miala de perseguição”, revelando mais uma “frente de combate” para ele . Eram muitas balas para um só peito.

A contra-ofensiva de Rui Ferreira não foi suficiente para combater uma estratégia de ataque bem montada e estruturado contra si . Fragilizado internamente, com a imagem desgastada foi ainda em nome da dignidade pessoal resistindo aos embates e teimava em claudicar. Os factos e a pressão também chegaram ao Palácio Presidencial da Cidade Alta, onde João Lourenço começou a ser “forçado a agir” e também elucidado sobre o erro que terá cometido por ter sido literalmente enganado no processo de nomeação de Rui Ferreira para o cargo de juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo. Em nome do princípio da separação de poderes, o Presidente da República não tem competências para exonerar o juiz conselheiro presidente do Tribunal Supremo mas perante os factos poderia usar os argumentos da ilegalidade da nomeação para anular todo o processo, facto que seria grave e poderia colocar em causa a credibilidade de todo o sistema de justiça. Ao convocar -lhe para consultas e ao comunicar-lhe a “falta de confiança institucional”, como avança o Club -K, o Presidente da República poderá ter-lhe indicado a porta de saída, embora fontes avancem que Rui Ferreira já há algum tempo preparava a sua saída.

Entre cabalas e teorias de conspiração, o processo de nomeação e eminente substituição de Rui Ferreira pode ser bastante revelador dos jogos, das jogadas, dos grupos de interesses, das intrigas, guerrinhas e promiscuidades que assolam a magistratura angolana . Rui Ferreira pagou caro a ideia que se “espalhou”, de que a sua presença no Tribunal Supremo fazia parte de estratégia de controlo do sistema judicial em alinhamento com o antigo Presidente da República, José Eduardo dos Santos. O facto de ter ainda forte influência junto do Tribunal Constitucional e da Comissão Nacional Eleitoral (CNE) pode ter provocado alguns alertas em certos círculos políticos e da magistratura. . A saída de Rui Ferreira do Tribunal Constitucional para o Supremo foi sempre vista com algum receio por alguns sectores da magistratura e fora dela. Fez um trabalho considerado positivo no Tribunal Constitucional, dignificou a função dos juízes conselheiros, criou condições de trabalho para os funcionários . No Tribunal Supremo estava a tratar do Regulamento Interno, da questão remuneratória dos funcionários, da independência financeira dos tribunais. Há quem diga que o seu erro foi ter saído do Constitucional para o Supremo, foi aí que começou a sua “ Via Sacra”. A sua renúncia pode ser vista como uma das maiores trapalhadas jurídicas da magistratura angolana, digna de um enredo para Hollywood, a indefinição só está no género: drama? Acção? Comédia? Terror? Engane-se quem pensar que a situação fica resolvida ou ultrapassada com a saída de Rui Ferreira. Não ! O cenário é muito mais dantesco e integrante . Rui Ferreira desistiu de combater “o bom combate” quando ainda faltavam cinco anos para terminar o mandato. A Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto , a sua “Alma Mater”, será a sua nova casa . Terminou a sua “Via Sacra”.

Deixe o seu comentário

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Botão Voltar ao Topo

Discover more from Vivências Press News

Subscribe now to keep reading and get access to the full archive.

Continue reading