Eugénio Costa AlmeidaOpinião

Do internacionalismo bipolar ao novo mundo tripolar…

Até ao desmoronamento da antiga União Soviética (URSS) e desde o fim da 2.ª Guerra Mundial, o sistema internacional girava em torno de duas superpotências, naquilo que se convencionava denominar de um mundo ou sistema bipolar dominado pelos EUA, como líder do Mundo Ocidental e da OTAN/NATO, e da União Soviética, assumidamente o farol do Mundo Socialista e da Organização do Tratado de Varsóvia (OTV ou comumente, Pacto de Varsóvia).

Havia um grupo de Não-Alinhados, liderado pela Jugoslávia e pela China, mas que, na prática, estavam adstritos ao Mundo socialista.

Depois da derrocada da URSS – e por extensão, do Pacto de Varsóvia –, o sistema internacional ficou sob a umbrella dos EUA e da NATO com alguns dos Estados que saíram da antiga URSS a aderirem a esta organização político-militar e a adoptarem o multipartidarismo e o sistema capitalista. Entrávamos num sistema internacional onde predominava o sistema unipolar, ou unipolarismo.

Como o sistema internacional não é um organismo inerte, bem pelo contrário, ao longo dos anos, registaram-se desenvolvimentos que, sem tirar a força e liderança do sistema aos EUA, foi minorando um pouco essa tendência; e com a entrada de novos actores políticos e diplomáticos, como o fortalecimento – algo que nunca perece ter sustentado – da União Europeia, o aparecimento de inúmeras ONG e com, particular destaque, a cada vez maior importância da China na cena internacional e uma progressiva recuperação de alguma força política e negocial da Rússia, o unipolarismo deu lugar a uma globalização do sistema internacional.

Durante uns anos – apesar de tudo, ainda se mantém – andámos a viver sob a capa de uma pretensa tutela política, diplomática e militar dos EUA e da NATO, quando, na realidade, essa tutela é mais consentida que, muitas vezes, desejada, para controlo dos gastos com a defesa de algumas zonas geográficas – as exigências do senhor Trump para que, principalmente, a Europa comparticipe mais para a sua defesa sem que os EUA continuem a ter de despender dinheiro que, no seu entender, pode permitir um maior desenvolvimento dos EUA, é um dos casos mais paradigmáticos.

Na realidade vivemos sob a umbrella de uma globalização em que o mundo e a cena internacional (sobre)vivem da e na defesa de mútuas e calculistas vantagens. Uma verdadeira diplomacia do dinheiro, das finanças, da sobrevivência, do interesse.

Só que a progressiva afirmação da China no concerto das Nações, a sua ponderada e afirmada penetração em zonas, outrora disputadas pelas antigas superpotências, a menosprezação dos EUA por alguma certa comunidade internacional – actualmente estamos num período em que a política norte-americana é mais virada para si que para a cena internacional – e a tal “progressiva recuperação de alguma força política e negocial da Rússia” tem mostrado que a globalização é mais uma alegoria aceite que sustentada.

Por exemplo, no caso africano, sem que os EUA e a Rússia se “apercebessem” – outros interesses político-militares se sobrepunham, como o Médio Oriente ou o Estado Islâmico, no caso dos EUA, ou a “recuperação” política da tutela de algumas repúblicas da antiga URSS, e a Síria, no caso da Rússia –, a China começou a “tomar conta” da política africana com pequenos financiamentos, muitos empréstimos, e uma “solidariedade” política com os poderes instituídos onde a mútua dispensa de “perguntas políticas” e a acentuada não-interferência nos poderes de ambos – China e países africanos – quase tornou o continente africano um plataforma da China para o resto do mundo, como adiante descreverei.

De facto, a conjugação destes três factores (a menosprezação pelos EUA, a progressiva e sustentada recuperação político-diplomática da Rússia e a afirmação segura da China na cena internacional), aliados à cada vez mais progressiva atitude da Europa de se fechar nos seus próprios problemas políticos (o crescimento acentuado do populismo e nacionalismo) e sociais (o não saber como lidar com a migração clandestina e de sobrevivência), pode estar a levar-nos para a existência de uma nova polaridade, de um novo sistema político: o sistema tripolar!

Temos, ou mantemos, os EUA como a principal superpotência, mas onde a Rússia e a China caminham, com passos firmes e claros para se juntarem aos norte-americanos como superpotências.

A posição da Rússia na questão ucraniana e, subsequentemente, nos mares que bordejam as duas repúblicas, bem como a aproximação do principal aliado e Estado-membro da NATO, a Turquia, colocando alguns problemas aos restantes aliados, quer na Europa, quer, também, onde a Rússia tem mantido um papel importante, no problema da Síria, a afirmação russa no problema venezuelano – uma nova crise como a de Cuba, não está posta de parte, até porque também tem o apoio, nada desinteressado, da China – e a retoma da venda de material de guerra a antigos aliados fora do contexto europeu – a possível fábrica de equipamento militar em Angola (de que tipo?, não se sabe bem) ou a venda de aviões caça Sukoy (ou Sukhoi), de nova geração, às FAA, são sinónimo disso –, ou, mais recentemente, a disponibilidade dos russos de apoiarem a República Popular e Democrática da Coreia (Coreia do Norte) na questão da desnuclearização e das relações com Washington, tornam Moscovo uma plataforma político-diplomática não desprezível.

Finalmente a China, levando por diante aquilo a que denomino,, e já teorizei, “Teoria do Mahjong”, ou seja o seu expansionismo político, económico e militar, quer no Mar da China – ou das Filipinas –, quer na península coreana – o sustentado apoio dado às políticas bélico-propagandísticas de Pyongyang –, bem como a tentativa de penetrar no Hinterland de África – ou no seu Heartland – através do domínio do Rimland africano tornam Beijing como o principal local de peregrinação de todos os políticos mundiais.

Recordemos como a penetração em África começou, não pelo rimland, ou litoral, mas pelo hinterland, ou seja, pela construção – e isto hoje torna-se importante – do caminho-de-ferro entre Lusaka (Zâmbia) a Dar-es-Salam (Tanzânia), a “TanZam Railway”, entre 1970 e 1975. Com o fim da URSS e a necessidade de alguns países se autofinanciarem, que não pela via do FMI – a estratégia das “virtudes políticas” não se coadunava com as políticas internas desses países – conduziram a ter na China o seu principal, e em muitos casos, único, financiador ou suporte político-diplomático: a sua potência global. Angola, foi – e ainda o é pela sua enorme dependência financeira – um desses casos.

Actualmente, e apesar de os EUA estarem a tentar reverter a situação de menosprezo pelo continente africano, através do apoio político-diplomático – pouco – e militar e social – muito – da US-Africom, ou da Rússia, com a venda de material de guerra, a China é a principal potência no continente africano.

A sua capacidade financeira e o seu enorme apetite por modernização, seja na electrónica, na tecnologia digital, ou na construção auto, aérea e naval – o recente desfile da frota naval chinesa, demonstrou isso mesmo –  aliados à sua forte política diplomática, mostram que a China, mesmo nunca o assumindo, já não é só uma grande potência, mas uma superpotência com efectiva projecção global.

Isto mais se tornou evidente, em particular, com o actual presidente Xi Jinping, onde a nova “Rota da Seda” – a Beltand Road (ou Cinturão da Rota da Seda ou Rota) – mostram que a China está absolutamente virada para os problemas e para as questões externas. Inicialmente a Rota da Seda estava virada para o Rimland asiático; posteriormente, estendeu-se para a Europa, quer por via terrestre, através de Moscovo, quer por via marítima, com passagem pelos portos de Mombaça (Quénia), Djibuti – onde têm uma plataforma logística portuária – e pelo Egipto.

Recentes informações de Beijing mostram que a China decidiu ser altura de se afirmar em todo o continente africano – no Heartland – dominando o que considera como Rimland principal de África Austral: usar os portos de Moçambique – provavelmente Beira – de Angola – quase de certeza o do Lobito, mais que o de Luanda, por enquanto – e, para quem não estiver atento às políticas chinesas, espantar-se-á, de São Tomé e Príncipe (STP), dado que estes não têm um porto que acolha navios de grande calado.

E porque são estes três portos mais importantes do Sul de África? O da Beira, porque através da Linha de Machipanda, liga o Índico ao interior de África, via Zimbabwe; o do Lobito, porque com o CFB, atravessa Angola e tem ligação ao Congo Democrático e à Zâmbia. Ora estas duas ligações ferroviárias, acabam por se interligar ao sistema ferroviário que atravessa quase todo o continente entre a RDC e África do Sul, dominando, assim, toda uma região geográfica onde predominam muitos dos principais minérios usados nas novas tecnologias.

E, como Mackinder afirmava, quem dominar o Heartland domina o mundo, ora, neste caso, quem dominar as principais matérias-primas para as novas tecnologias, domina o mundo digital e tecnológico.

Já STP significa que a China está disposta a construir um porto nesta república lusófona e dominar uma rota marítima importante no Atlântico Sul. E quem dominar esta rota, domina todo o ecossistema geopolítico e geoestratégico do Golfo da Guiné e as ligações marítimas para a Europa e todo o continente americano, colocando-os numa completa subalternização à China.

Daí que a presença russa e chinesa na Venezuela não seja só por apoio político a Maduro, mas visando, provavelmente, tornar “o corredor” geopolítico e geoestratégico Venezuela-STP um estrangulamento às políticas económicas e diplomáticas do Ocidente. A Rússia, para ter um porto de águas quentes na sua projecção global. A China, porque a Rota da Seda também poderá – terá de – passar pela América Latina.

A ignorância – não poucas vezes – e a displicência político-diplomática de Washington, e, em particular, da administração Trump, e a caminhada firme e sustentada do expansionismo político, financeiro, militar e diplomático sino-russo – mais de Beijing que de Moscovo –, leva-nos a que concluamos que, embora poucos o admitam ou reconheçam, estamos num novo mundo geopolítico: o sistema tripolar.

*Investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE-IUL(CEI-IUL) e investigação para Pós-Doutorado pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Agostinho Neto**

** Todos os textos por mim escritos só me responsabilizam a mim e não às entidades a que estou agregado

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