Editorial

Bornito de Sousa e os efeitos da verdade ilusória

O fenómeno da propaganda e da informação falsa não é novo, mas encontrou nas redes sociais o aliado perfeito. É através destas, principalmente do Facebook e do WhatsApp, que as fake news se tornam virais, muitas vezes fomentando ideias primárias ou ódios ou hate speech. Graças a um algoritmo que ninguém sabe como funciona, as redes sociais compilam posts e likes e vão sugerindo conteúdos semelhantes aos que já lemos ou de que gostamos. O algoritmo orienta o que vemos e envolve-nos numa bolha, mostrando-nos sempre o mesmo lado das coisas. Em muitos países, as redes sociais são usadas para controlar o debate público e político. Surgem muitas vezes uns “controladores de serviço” para, intencionalmente, contaminarem e disseminarem as discussões. Muitos destes “controladores de serviço” criam contas falsas, fazem pedidos de amizade aos visados ou a pessoas próximas, com o objectivo de recolher informação e fazer análise em gabinetes especializados ou criados para o efeito. Estas contas são utilizadas para a manipulação política, profissional e social ou mesmo para a defesa de interesses corporativos, são ferramentas eficazes para a propaganda online e também para campanhas que visam uma desestabilização política e social. Uma só pessoa num gabinete em Luanda, Lisboa, Paris, Londres ou Nova Iorque pode criar um exército de robots políticos nas redes sociais e passar uma ideia ou ilusão de consenso, descontentamento, de insatisfação ou indignação.

Na última década criou-se o mito de que a chamada democracia digital, tecida pelas redes sociais, daria uma lufada de ar fresco a um sistema democrático em crise. Com as redes sociais iria nascer um universo de informação/opinião influente, novos controlos do poder político e reforço do diálogo entre governantes e governados. Do lado de quem promove a desinformação não há preocupações com a democracia e os direitos dos cidadãos. As fake news são mentiras escritas como se fossem notícias a sério ou factos para baralhar quem anda na Internet. Não são erros de jornalistas, aliás na maior parte das vezes não são sequer escritos por jornalistas e são feitos com o objectivo de desinformar. A manipulação social e política nas redes sociais é um tema de grande preocupação dos governos mundiais, basta ver os casos das eleições de Donald Trump nos EUA, Jair Bolsonaro no Brasil ou do Brexit no Reino Unido.

Durante a campanha nas últimas eleições na Alemanha, 7 das 10 notícias mais virais sobre Angela Merkel eram falsas. Nas eleições em França cerca de 30 mil contas falsas foram identificadas e removidas. Em 2017, a Alemanha tornou-se o primeiro país a apertar o cerco às fake news. A lei do Facebook, como ficou conhecida, obriga as redes sociais a retirarem páginas de notícias falsas e de conteúdos de ódio em 24 horas. E quem não cumprir pode incorrer em sanções que vão até 50 milhões de euros. Itália está a seguir os passos da Alemanha e França está a discutir uma proposta de lei do Governo no mesmo sentido tendo aprovado um pacote legislativo de Luta contra a Manipulação de Informação. Espanha criou a comissão permanente contra a Desinformação e apresentou o seu Plano Nacional de Luta contra a Desinformação. Em Portugal, a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) sugeriu ao Parlamento que pondere a criação de legislação para definir e sancionar a desinformação online. A proposta faz parte de um conjunto de medidas para combater as fake news. “O combate à desinformação, ainda que passe por uma limitação da liberdade de expressão constitucionalmente consagrada, não poderia deixar de ser realizado” diz a ERC. E nós, em Angola?

A democracia é um sistema, a liberdade é um valor. Um comunicado do Gabinete de Comunicação Institucional do vice-presidente da República, Bornito de Sousa, revelou estarem em curso “diligências para responsabilizar criminalmente os supostos implicados numa campanha contra Bornito de Sousa”. O próprio vice-presidente terá considerado abusiva “a infame campanha que atenta conta o seu bom-nome e honra” nas redes sociais, segundo a qual estaria a seguir menores nas redes sociais. O comunicado termina apelando ao “uso responsável das redes sociais, plataformas digitais e das tecnologias de informação e comunicação” para fins verdadeiramente construtivos e socialmente úteis. Bornito de Sousa enquanto ministro da Administração do Território foi dos primeiros governantes a interagir com os cidadãos nas redes sociais, participando em debates e discussões, partilhando informações e dando notícias sobre a sua agenda profissional, só “desapareceu” quando teve a conta de Facebook denunciada por causa de uma acesa discussão em torno da situação do caso 15+2, quando o caso dominava a agenda política e mediática nacional e internacional. Agora nas vestes de vice-presidente da República tem o Twitter como forma de manter o diálogo virtual, além de uma página Facebook da vice-presidência da República que foi criada há poucas semanas. O “poder político” das redes sociais é grande, os políticos sabem disso e usam-no para se aproximarem dos cidadãos, para “humanizar” uma relação que, sendo virtual, visa conquistar/alcançar um mundo real.

As plataformas digitais são ninhos de informação errada, de excessiva exposição e de discussões negativas, sendo as consequências nefastas e prejudiciais. Em Outubro de 2017, um trabalhador palestiniano postou na sua conta privada de Facebook uma fotografia sua no local de trabalho, perto de uma retroescavadora. Junto da imagem, escreveu: “Bom dia!” Um algoritmo “cometeu um pequeno erro” ao transliterar as letras árabes. Em vez de Ysabechhum! ( que significa bom dia), o algoritmo identificou as letras como Ydbachhum! (Matem-nos). Desconfiando que ele pudesse ser um terrorista que pretendia usar uma retroescavadora para atropelar pessoas, as forças de segurança israelitas apressaram-se a prendê-lo. O homem foi libertado depois de terem percebido que o algoritmo tinha cometido um erro. O post no Facebook foi eliminado mas a experiência traumática do trabalhador palestiniano ficou.

Também é verdade que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar. A repetição é frequente e erroneamente confundida com exactidão. A ideia de que uma mentira várias vezes repetida facilmente se torna ou assume valor de verdade, no caso deste post, pode ter “atribuído” a Bornito de Sousa um exemplo. A rapidez e a forma como se tornou viral nas redes sociais, a história segundo a qual o vice-presidente de Angola estaria a seguir menores na Internet, deixa-nos perceber que Bornito de Sousa está a ser vítima do chamado “efeito da verdade ilusória”. Estudos demonstram que mesmo quando as pessoas sabem que algo não é verdadeiro, acabam por começar a acreditar por meio do efeito da repetição da exposição. Uma boa parte dos angolanos acredita integralmente naquilo que vê e lê nas redes sociais, o conteúdo recorrente com certo tipo de narrativas, pode influenciar a opinião das pessoas. É muito fácil transformar um “não assunto” num grande assunto e depois aguardar que as redes sociais mordam a isca e o plano acabe como previsto.

Bornito de Sousa não é um vice-presidente com poder, influência e protagonismo idênticos aos do seu antecessor, Manuel Vicente. Há muito se percebeu que a sua indicação não terá sido uma escolha do Presidente João Lourenço, que por força de leis, regras e regulamentos vai ter de coabitar com ele até 2022, e certamente que, numa eventual recandidatura de João Lourenço para o cargo de Presidente da República, Bornito de Sousa não será o nome escolhido (nem me parece que o próprio Bornito de Sousa esteja interessado). É evidente a forma como João Lourenço tem esvaziado poderes e competências do seu vice-presidente. A indicação de Carolina Cerqueira para ministra de Estado para a Área Social é um exemplo prático deste “ofuscar” e da promoção de uma irrelevância do cargo (no tempo de Manuel Vicente a área social foi sempre coordenada pelo vice-presidente). Mesmo nas cerimónias e nos eventos públicos em que aparece com João Lourenço, Bornito de Sousa surge com um semblante carregado, pouco à vontade e “desprovido” do seu apurado e contagiante sentido de humor.

Quando o país vivia uma crise de combustíveis, quando os cidadãos andavam preocupados em como abastecer as suas viaturas e geradores, andavam exaltados e frustrados nas longas filas nos postos de abastecimento pela madrugada adentro, o vice-presidente usava o Twitter para dar a notícia do nascimento e felicitar o novo membro da realeza britânica, o filho de Harry e Meghan Markle. A publicação caiu muito mal e ajudou a sustentar a ideia de que o vice-presidente anda com muito tempo livre e alheio aos grandes problemas dos seus cidadãos. Creio que este primeiro episódio poderá ter “potenciado” ou estimulado o segundo episódio de que persegue menores nas redes sociais, para passar a ideia de que Bornito de Sousa não tem tido muito com que se ocupar.

Qualquer pessoa que esteja minimamente familiarizada com história e teoria política sabe que a virtude e o poder nem sempre são compatíveis. As redes sociais dão primazia ao espectáculo, promovem muitas vezes uma ilusória aproximação aos cidadãos e ignoram o dilema da virtude e do poder. A vida política e virtual do meu antigo professor de Direito Constitucional não está fácil e nem tem sido facilitada. Mas é de todo preocupante quando as fake news atingem e tentam prejudicar a imagem, a honra e o bom-nome do seu vice-presidente. Mais preocupante ainda é saber que Angola não tem leis específicas nem uma estratégia concertada entre entidades para o combate às fake news. Governo, polícias e serviços de inteligência e segurança (SINSE, SIE, e SIM) não têm um plano concertado nem estruturado para combater os efeitos que pode provocar a propaganda online baseada em mentiras. Faltam medidas concretas, legislação e capacidade para avaliar a verdadeira dimensão do problema. Que este caso de Bornito de Sousa nos ajude a perceber que precisamos de começar já a trabalhar numa estratégia coordenada de combate às fake news, porque com as autárquicas de 2020 e as presidenciais de 2022 os danos serão maiores e irreversíveis. Não devemos ficar “adormecidos” numa verdade ilusória e pensar que está tudo bem e controlado, sob pena de perdermos a dinâmica de outros países que já sofreram na pele os efeitos que esta ameaça à democracia e à afirmação das liberdades provoca. Balumuka! 

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