Editorial

Deixem-se de conversas da treta

Conversa da Treta foi um espectáculo de comédia portuguesa onde dois bons amigos, cheios de tiques, conversam sobre os seus sucessos e insucessos pessoais, mas com muito humor. Dois actores, António Feio (já falecido) e José Pedro Gomes dominam, como poucos, os mecanismos de humor, dão corpo e expressão ao que se pretende que seja um vendaval de gargalhadas, a pontuar um texto que vai desde as raízes chãs e populares, até ao nonsense absoluto. Depois da morte de António Feio, José Pedro Gomes deu continuidade ao projecto com O Filho da Treta, contracenando com o actor António Machado. E nos últimos tempos juntou-se à Ana Bola e fazem sucesso com a peça O Casal da Treta. Um bom espectáculo de humor e com muita treta à mistura.

Treta é conversa fiada e de pouco valor. É conversa para distrair, para desviar dos principais assuntos, é conversar para fazer passar tempo. Os brasileiros usam a expressão “papo furado”, já os falantes da língua inglesa têm uma expressão muito interessante e bastante divulgada na sétima arte que é o “bullshit”. Treta do espanhol treta que vem do francês tracte, ambos radicados no latim tractus, que ganhou na língua portuguesa um significado perjorativo. O curioso é que a palavra era inicialmente usada no jargão da esgrima, tendo o sentido de “habilidade em aparar e devolver golpes”. Também já misturou a mutreta que vem do nosso quimbundu muteta.

Todos nós podemos e certamente já agimos como treteiros às vezes. Mas acho estranho e completamente despropositado que o serviço público de televisão aproveite o dia da Independência Nacional e véspera de uma visita oficial do Presidente da República, João Lourenço, ao Vaticano para o abordar com assuntos extemporâneos e que não chamados para aquele momento, acabando o próprio repórter por envolver João Lourenço numa conversa de treta que ele mesmo criou. E a treta aqui foi mesmo a conversa criada para se desviar dos principais assuntos/temas, para fazer passar tempo. Se a ideia era clarificar a presença e negar o “apadrinhamento de casamento” da filha do presidente da Assembleia Nacional, Fernando da Piedade Dias dos Santos “Nandó”, e abordar o caso da ex-deputada do MPLA Tchizé dos Santos creio que a ocasião não foi a mais adequada ou apropriada. Qual é a necessidade de abordar o PR com a clarificação da sua presença num casamento que já aconteceu há dois meses? Por que razão tinha o assunto de ser levantado logo no dia da independência Nacional e depois de o próprio PR ter prestado uma homenagem ao fundador da Nação? Para um país em crise, com uma crescente insatisfação social, com problemas nos sectores da saúde e da educação, com fome, seca, falta de água, luz e saneamento, eram mesmo aquelas as questões prioritárias? E em véspera de um visita presidencial ao Vaticano não havia questões sobre as relações entre os dois Estados? Sobre a Concordata?

Se foi estratégia pessoal do jornalista ou uma coordenação entre serviços de comunicação, a emenda pode ter saído pior que o soneto. Não criou o impacto desejado apesar da rapidez de partilhas nas redes sociais para fazer daquilo o assunto do dia. Este caso da presença do PR no chamado “casamento dos marimbondos” que teve lugar há dois meses, já era um caso esvaziado e extemporâneo do ponto de vista dos timings da comunicação. Quando devia falar sobre o assunto, João Lourenço calou-se. Reduziu-se ao silêncio, o assunto da sua presença e possível “apadrinhamento” do casamento foi tratado pela Cidade Alta como um “não assunto” na altura não havendo uma resposta ou posição oficial. Então por que razão “ressuscitar” o assunto quase dois meses depois e logo no feriado mais importante do País? E já não falo da questão colocada sobre a expulsão da deputada Tchizé dos Santos, assunto que o próprio fez questão de clarificar aos jornalistas que na sua qualidade de PR e no âmbito do princípio da separação de poderes, aquilo não era assunto da sua competência.

“Em tempo de guerra todo o buraco é trincheira”, ouvi há dias. É sabido que João Lourenço não está a viver os melhores momentos em termos de popularidade e muitas vezes os políticos, quem os rodeia ou faz parte da máquina de propaganda política gostam criar ou ensaiar factos para inverter certos cenários que consideram desfavoráveis, no que o jornalismo e os jornalistas sempre podem dar uma ajuda, sempre podem ficar “do lado de dentro da festa”. É legítimo que os jornalistas e o jornalismo queiram saber se João Lourenço está a gostar de ser Presidente da República? Se está a gostar de aprender a jogar golfe? Se gosta de ir a festa de A ou B, se é ou não padrinho de fulana ou sicrana? Há direito e legitimidade mas dentro dos timings, no momento e nos espaços adequados. Fica-se com a ideia de que quando se tem a oportunidade de se perguntar tanto (com qualidade e objectividade) se pergunta tão pouco. Mas aí também reside um grande problema: a combinação entre o jornalismo e a propaganda nem sempre é a mais recomendável. Hoje o público percebe com facilidade quando se concebem actos com o objectivo de manipular as convicções do maior número de pessoas. E o que as pessoas não gostaram foi de ver um jornalista a desperdiçar uma oportunidade plena de, naquele dia especial e naquele momento em particular, questionar ou confrontar o PR (que nem sempre tem muita disponibilidade para falar aos media nacionais) com temas actuais, objectivos pertinentes e de verdadeiro interesse nacional, e “arrigimentar” o chefe de Estado em conversas extemporâneas e dos grupos de WhatsApp.

Se o questionário fazia parte da “media agenda” do profissional ou do órgão que representa foi mau e despropositado para o momento. Se foi uma estratégia desenhada nos “laboratórios de comunicação” pelos nossos spin -doctors, então o guião, apesar de bem decorado, estava desactualizado e desenquadrado no tempo e no espaço. Parecem aqueles fracassos de bilheteira em que a determinada altura, os actores parecem pedir: “Tirem-me deste filme.” Aos jornalistas e aos políticos o povo há muito que vem deixando uma mensagem: “Deixem-se de conversas da treta!”

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