Opinião

Em 2022, a máscara caiu

"Nós por cá e por lá decidimos deixar cair, também, as máscaras todas, já que as da pandemia escondiam outros falsos rostos".

O ano que agora termina foi seguramente o mais intenso, o mais agonizante e até mesmo o mais difícil de todos que vivi. Começou bem, com o olhar sobre um horizonte que se perspectivava melhor em relação aos dois anos anteriores, pandémicos e de incertezas. A única certeza que pairava na minha cabeça bem no primeiro dia de 2022, enquanto contemplava a natureza do Turitanga, era de que as coisas jamais seriam as mesmas daí em diante: o mundo iria mudar com o impacto da Covid-19; Angola teria alternância com as eleições gerais; e eu iria certamente empreender uma inversão radical na minha marcha.

E de facto, o mundo mudou! Mas não tanto por causa da pandemia “made in China”. A guerra entre a Rússia e o Ocidente em território da Ucrânia roubou todas as atenções dos holofotes e das câmaras de televisão. Passou a ser servida como o prato principal no menu dum evento visto como especial, com nome de “invasão russa”, e faltou pouco para que fosse apelidada de “terceira guerra mundial” talvez pelo simples facto de o cenário de morte e destruição circunscrever-se a um único país.

Contudo, lá perfilam misseis, drones e outros armamentos fabricados e “emprestados” pelos americanos, ingleses, franceses e demais parceiros europeus. E só graças a uma força suprema qualquer é que Moscovo ainda não decidiu virar os seus canhões mais a direita para rebentar as veias e artérias do coração da Europa Ocidental, e assim forçar um envolvimento mais directo dos americanos, por um lado, e dos chineses, iranianos e quiçá norte-coreanos, em apoio aos russos. Um risco, diga-se, ainda iminente nesta entrada para 2023.

A solidariedade de meio mundo para com o sofrimento do povo ucraniano fez, no entanto, a outra metade do mundo pensar e comentar sobre a pavidez com que são encarados o desespero e a morte de milhões de emigrantes que fogem das guerras e dos regimes ditatoriais em África, no Médio Oriente e na Ásia. A máscara do Ocidente, aquela que parecia de ferro, intocável e imbatível, foi-se ao chão.

Nós por cá e por lá (parafraseando o título do livro da Jornalista Sílvia Milonga) decidimos deixar cair, também, as máscaras, todas. Já que as da pandemia escondiam outros falsos rostos. Uns de candura, outros de amizade, outros ainda de respeito às liberdades e aos direitos fundamentais do homem numa sociedade justa. Era expectável que assim viesse a acontecer; afinal, estávamos em ano eleitoral. E para muitos passou a ser o vale tudo: ultrapassagens à direita, atropelos nas passadeiras e colisões com contornos à violência, se preciso fossem. Até deu para ver nas ruas o desfile duma força armada que parece ter saudades do dedo no gatilho.

Durante o processo que levou às últimas eleições gerais de Agosto de 2022, o que se observou foi um cortejo de violações à lei e aos princípios que regem uma verdadeira democracia. Inclusive os grupos de família, amigos e colegas nas redes sociais se tornaram verdadeiras arenas onde muitos aproveitavam para cuspir o veneno da sua intolerância. No final, não houve alternância, mas sim acusações, desinteligência e frustração. Tanto de quem diz ter perdido de forma injusta, quanto de quem viu a sua hegemonia fortemente abalada. A máscara caiu.

Angola acabou por se transformar num barril cheio de pólvora cuja explosão iria roubar, por poucos minutos que fossem, as atenções da media internacional, e que só não explodiu porque faltou alguém de fora para acender o rastilho. Claro, estão todos preocupados com a guerra na Ucrânia. Se calhar esperavam por uma implosão que fosse provocada por quem se sentiu vilipendiado e roubado nas urnas.

Mas tal não aconteceu, e os anseios foram refreados por uma comunidade internacional que tem necessidade de manter estáveis as fontes alternativas de petróleo e gás, o que só é possível se as operações realizadas pelas multinacionais BP (Inglaterra), Chevron (EUA), Total (França) e Eni (Itália) em território angolano e noutros fora da Europa estarem longe de qualquer ameaça.    

Veio o Mundial do Qatar, Messi da Argentina levou a melhor sobre Cristiano de Portugal, e a conversa sobre futebol tornou-se tão ensurdecedora que terminou o ano com a morte do “rei” Pelé. Os ecos sobre a falta de luz e gaz na Ucrânia e o medo do frio com o aproximar do inverso passaram, por algumas semanas, a rodapé, substituídas também pelas cheias e tempestades de neves mortíferas. Enquanto isso, os que estão livres da guerra, da fome e das catástrofes naturais preparam-se para o banquete do reveillon, depois de saciados na ceia de natal.

Em Angola, aos poucos a pólvora se esfumou, restando talvez um pouquinho para o fogo-de-artifício da meia-noite que marca a passagem de ano, mas nada que provoque um show de pirotecnia à Gambeta. Fala-se do sistemático adiamento das autarquias e de um terceiro mandato. Não gostei. Mas é o país que temos e que continua a sua caminhada em contramão, com a mesma “silenciocracia” de sempre, no palavreado de Luzia Moniz, a jornalista que abomina “jornabófias”.

A propósito, começaram as perseguições de todo o tipo a quem ousou pensar ou se expressar de forma diferente, entre eles muitos jornalistas, como eu. E foi preciso a classe sair à rua, pela primeira vez na história do país, para gritar bem alto que nós não temos medo da liberdade.

A meio de tudo isso, registara-se o desaparecimento físico de pessoas queridas e odiadas, ídolos para uns, escórias para outros. Dos mortos não se fala mal, rezam os bons hábitos. Mas não tem como não lembrar que 2022 ficou marcado pela morte do querido Presidente que conduziu o país à paz, mas também promoveu a miséria e a teia da corrupção; do grande artista que cantou e encantou com o kuduro, mas também se tornou numa má influência para muitos jovens e adolescentes; e pelo centenário do saudoso poeta e fundador da Nação, mas que para muitos não passou de um sanguinário devido a um processo ocorrido em 1977 e que até hoje o seu partido ainda está a tentar consertar. E qual dos três teve maiores honras no seu funeral também virou assunto até para os mais velhos.    

Eu que, entretanto, comecei o ano focado numa inversão radical na minha marcha, decidido a deixar de ser “marionetado”, a mudar de papéis, no verdadeiro sentido, mas também no figurado, tirei, também, a máscara que já me estava a sufocar, acrisolei a minha mente, puxei o travão, olhei para o retrovisor, mensurei os buracos e as crateras por que passei, avaliei os danos e as mazelas, desci do muro – sim, um muro com rodas, freios e retrovisor, mas em direcção ao nada – e empreendi uma jornada penosa, decadente, contudo, veemente, que acabou por me levar a respirar novos ares e conhecer outras realidades em Joanesburgo, Adis Abeba, Dakar, Praia e Lisboa. Uma jornada ainda muito longe de ser dada por concluída, nem com este final de 2022, nem tão-pouco com o princípio de ano novo.

O professor, escritor e político português nascido na Caála, Vitor Ramalho, actual secretário-geral da UCCLA a quem conheci nesta epopeia, no seu livro publicado no ano que termina intitulado “As Minhas Causas”, escreve o seguinte: “a juventude é muitas vezes temerária quando quer desabafar e, na vontade de tudo relatar e esgotar o que lhe vai na alma, atropela as palavras”. Não sendo eu mais um jovem intrépido, fico por aqui, desejando boas Vivências em 2023 para todos os leitores.

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