
Em 2017, uma angolana de 33 anos viajou de Angola para Portugal quando estava grávida de 32 semanas. Na 37.ª semana de gestação, as suspeitas de ruptura do saco amniótico levaram-na ao Hospital Garcia de Orta, em Almada – e foi aí que os exames ao feto revelaram uma grave limitação no seu crescimento e malformações no sistema nervoso central. Traçou-se um diagnóstico (provisório) de infecção pelo Zika durante a gravidez, uma vez que uma estirpe deste vírus já tinha sido associada a malformações congénitas, incluindo microcefalia, em que a cabeça e o cérebro são mais pequenos do que o normal originando dificuldades cognitivas, na fala, motoras ou no comportamento. O bebé, uma menina, nasceu ao fim de 38 semanas de gestação e o diagnóstico de infecção pelo Zika veio a confirmar-se no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.
A descrição do caso foi publicada, a 25 de Julho, na revista Transactions of the Royal Society of Tropical Medicine and Hygiene. É o primeiro caso de microcefalia em Angola associado à infecção pelo Zika, mais exactamente à estirpe asiática deste vírus. “Tanto quanto sabemos, este é o primeiro relato que mostra a circulação da linhagem asiática em Angola. É o primeiro caso confirmado de síndrome congénita por Zika no continente africano e o primeiro detectado [importado] em Portugal”, escreveu a equipa no artigo científico, assinado em primeiro lugar pela médica Madalena Sassetti, do Hospital Garcia de Orta, e que inclui outros médicos deste hospital e investigadores do Centro de Estudos de Vectores e Doenças Infecciosas do Instituto Nacional de Saúde.
A outra linhagem principal do Zika é a africana, isolada pela primeira vez em 1947 no Uganda, quando o vírus foi descoberto, e para esta estirpe não estão descritos quaisquer casos de microcefalia. Mas a partir de 2007, num surto na Micronésia, e depois em 2013-2014, na Polinésia Francesa, a estirpe asiática revelou que este vírus não era tão benigno que só provocasse, como se pensava até aí, sintomas parecidos com os da gripe. O grande boom das complicações ligadas à linhagem asiática do Zika ocorreu no Brasil, onde o vírus terá chegado provavelmente em 2013, deixando um rasto de milhares de casos de recém-nascidos com microcefalia. Não existe uma vacina para o Zika.
“Do que temos conhecimento, os casos clínicos de infecções com complicações neurológicas graves (congénitas ou não) têm todos sido associados unicamente a estirpes da linhagem asiática”, explica a investigadora Líbia Zé-Zé, do Centro de Estudos de Vectores e Doenças Infecciosas, e uma das autoras do artigo científico. “Até à divulgação do nosso trabalho, não tinha sido reportado nenhum resultado de diagnóstico molecular que permitisse confirmar a presença de estirpes da linhagem asiática em África continental”, nota a investigadora, explicando por que é importante esta identificação em termos de saúde pública: “A introdução da linhagem asiática pode levar a ocorrência de casos de infecção congénita em África.”
Na realidade, o artigo menciona que se tem registado recentemente um aumento da incidência de microcefalias congénitas em Angola, sobretudo no Sul da região de Luanda. “Este aumento pode ser importante devido à potencial disseminação do vírus Zika de Angola para outros países da África continental”, lê-se. “A expansão geográfica da estirpe asiática do vírus Zika teve um impacto muito significativo em muitos países”, acrescenta Líbia Zé-Zé. “Para além do Brasil, em toda a América do Sul, Central e Norte foram reportados milhares de casos de Zika nessa vaga de 2015. Em África, Cabo Verde é um país com muito turismo e voos directos do Brasil, o que justifica a sua introdução já há dois anos.”
Para confirmar as suspeitas iniciais de infecção pelo vírus Zika da angolana que veio a Portugal (que não relatou sintomas de infecção), enviaram-se para análise no Instituto Nacional de Saúde várias amostras recolhidas na mãe e no bebé após o nascimento. “Numa das amostras [de urina] do bebé detectou-se por biologia molecular a presença dos ácidos nucleicos do Zika, o que permitiu confirmar a infecção congénita por este vírus”, diz-nos Líbia Zé-Zé. Além disso, sequenciou-se uma pequena porção do genoma do vírus, determinando-se que a estirpe causadora da infecção pertencia à linhagem asiática.
Expansão continua
De onde veio esta estirpe do vírus que chegou a Angola? Ainda não se sabe ao certo mas já há pistas. O Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, a equipa do investigador português Nuno Faria, da Universidade de Oxford (Reino Unido) estão a investigar esta questão, numa colaboração que envolve ainda o Ministério da Saúde de Angola e outras instituições angolanas e brasileiras. “Estamos a trabalhar no genoma completo deste vírus de forma a ter dados suficientes para avançar com esta análise”, conta Líbia Zé-Zé. “No seguimento deste trabalho de colaboração, com a análise de sequências quase totais do genoma desta estirpe e de mais duas amostras de doentes angolanos, os dados genéticos sugerem que o vírus Zika poderá ter sido introduzido em Angola a partir do Brasil.”
Será que a infecção pela estirpe africana (mais benigna) tem alguma imunidade contra a estirpe asiática? “A linhagem asiática resultou de mutações que se foram acumulando quando o vírus saiu de África para a Ásia. As infecções prévias causadas por estirpes da linhagem africana conferem alguma imunidade à estirpe asiática, mas não está completamente esclarecido até que ponto”, responde a investigadora. “A percentagem da população com imunidade para Zika (a linhagem africana) é elevada em algumas regiões de África e noutras simplesmente não há estudos.”
Num mundo cada vez mais global, este vírus continua a expandir-se. “O Zika é transmitido essencialmente por picada de mosquitos do género Aedes, embora também possa ser transmitido por contacto sexual, transfusões sanguíneas e aos fetos pelas mães. A expansão geográfica destes vírus é facilitada pela expansão e introdução das espécies de mosquitos vectoras em novas localizações geográficas, e como resultado da globalização. A expansão geográfica do Zika ainda está em curso, embora de uma forma menos acelerada do que em 2015-2016”, sublinha Líbia Zé-Zé. “O impacto real do vírus Zika, nomeadamente as consequências a longo prazo das infecções congénitas e as diferenças observadas na percentagem de casos e severidade dos casos clínicos em diferentes países, ainda está longe de ser completamente compreendido.”
Fonte: Público