Governo rescinde contrato com a Aenergy de Ricardo Machado

A Aenergy, do português Ricardo Machado, fez fortuna em Angola, mas o Governo rescindiu os contratos. O enredo envolve falsificação de documentos e a gigante GE
“Eu nunca dei ‘gasosa’. Nunca.” O empresário português Ricardo Machado garante ao Expresso que nunca pagou subornos em Angola. A partir de 2012 construiu em Luanda um pequeno império na área da energia, com escritórios de apoio em Portugal e uma relação privilegiada com a norte-americana General Electric (GE). Hoje vive um pesadelo jurídico, em guerra com o Governo angolano.
A Aenergy, empresa que Ricardo Machado fundou em 2012, chegou a faturar 462 milhões de dólares (€420 milhões ao câmbio atual) em 2017, mas depois descarrilou.
Este ano, a Aenergy viu o Governo angolano rescindir unilateralmente os contratos firmados há dois anos e respaldados por uma linha de crédito de 1,1 mil milhões de dólares (€1000 milhões) da GE Capital.
Luanda justifica a rescisão com “a perda de confiança na Aenergy, em razão de, às ocultas, ter sido utilizado o financiamento da GE Capital, contratado pelo Estado exclusivamente para fazer face às despesas inerentes à execução dos 13 contratos com a Aenergy, para o pagamento de faturas da GE sobre a Aenergy que estavam fora do âmbito dos contratos”. O Governo angolano acusa a Aenergy de forçar a inclusão de quatro turbinas para centrais elétricas nos contratos com documentos forjados. O Ministério da Energia (Minea) explicou ao Expresso que a perda de confiança foi agravada por “o pagamento das quatro turbinas pelo financiamento da GE Capital só ter sido possível mediante a utilização de cartas falsas da PRODEL e da ENDE [empresas estatais angolanas às quais a Aenergy vem fornecendo turbinas e serviços]”.
Mas Ricardo Machado garante que “a Aenergy não praticou quaisquer irregularidades”. Admite que a empresa contratou à GE quatro turbinas ainda antes do financiamento da GE Capital (formalizado em agosto de 2017), “não tendo desrespeitado qualquer preceito legal”. O empresário português nota que o ministro angolano da Energia, João Baptista Borges, “teve desde sempre conhecimento da aquisição pela Aenergy das quatro turbinas adicionais, mostrando interesse na sua aquisição pelo Estado”.
Ricardo Machado facultou ao Expresso uma carta de 31 de outubro de 2018, assinada pelo ministro Baptista Borges, em que este solicitava ao Presidente João Lourenço autorização para negociar com a Aenergy uma adenda ao contrato de 2017. Essa alteração passava por contratar à Aenergy mais quatro turbinas (25 megawatts cada), no valor de 154 milhões de dólares (€140 milhões). Para que Luanda não gastasse mais, a Aenergy reduziria de cinco para três anos a manutenção na central de ciclo combinado Soyo 1. O ministro Baptista Borges confirma essa versão dos factos mas esclarece que “nunca lhe foi dado a conhecer que as quatro turbinas haviam sido adquiridas com financiamento da GE”. As cartas falsas.
Mas nos meses seguintes o negócio é travado. Em dezembro, numa reunião em Luanda a pedido do ministro da Energia, o então representante da GE Angola, Wilson da Costa, informa João Baptista Borges que os contratos de 2017 poderiam ser alterados, mas que as quatro turbinas em questão já haviam sido vendidas ao Estado angolano no âmbito do financiamento da GE Capital, segundo a versão relatada ao Expresso pelo Minea.
Ricardo Machado conta uma história diferente. Num e-mail de 7 de dezembro de 2018, o fundador da Aenergy corroborava a alegação de Wilson da Costa de que a GE Capital financiou 12 turbinas (as oito originais do contrato e quatro adicionais), mas a 17 de dezembro Ricardo Machado escreveu ao ministro Baptista Borges para esclarecer que os contratos de 2017 previam o fornecimento de oito turbinas TMGE 2500, tendo depois a GE concordado em incluir na linha de crédito mais quatro máquinas, com base em cartas da PRODEL e da ENDE.
Mas vários problemas surgiram. É que a alteração reduziria em cerca de 100 milhões de dólares os serviços a prestar pela GE à central do Soyo. E a GE não queria perder essa receita. “Essa ausência de disponibilidade da GE Angola decorre de uma razão muito relevante que não era apenas comercial: o então CEO da GE Angola [Wilson da Costa] havia também entregado à GE Capital outra versão das cartas da PRODEL e da ENDE que dariam a entender que estas entidades já tinham aceitado incluir nos seus contratos quatro turbinas adicionais”, contextualiza Ricardo Machado. O Expresso tentou, sem sucesso, ouvir Wilson da Costa.
Este já deixou de trabalhar para a GE. O seu perfil no LinkedIn indica que desde junho representa em Angola a norte-americana New Fortress Energy. Mas é uma figura controversa. Wilson da Costa é alvo de um processo por ter falsificado o seu bilhete de identidade (será, segundo escreveu o jornal “A República”, um cidadão camaronês chamado Beson Watson Ebai). No seu perfil diz ter feito um curso de Engenharia Mecânica na Penn State University. Mas fonte oficial da universidade norte-americana revelou ao Expresso não ter qualquer registo de Wilson da Costa.
O Expresso questionou o presidente da GE Gas Power, Scott Strazik, sobre a relação com Wilson da Costa e a Aenergy, mas não obteve resposta. Em outubro, num artigo sobre o grupo GE, o “The Wall Street Journal” apontava a existência de uma auditoria interna sobre a faturação antecipada de turbinas para Angola, que terá levado a alterações nas práticas contabilísticas do grupo. Scott Strazik foi um dos gestores ouvidos na auditoria.
Certo é que, em janeiro deste ano, Angola convidou a Aenergy a entregar à GE todos os seus contratos. Perante a recusa, em agosto, o Minea rescindiu com a empresa de Ricardo Machado. Em setembro, a Aenergy contestou a decisão do Minea e em outubro apelou à intervenção de João Lourenço, mas sem sucesso.
Ricardo Machado já solicitou ao procurador-geral da República de Angola a investigação das cartas falsas. “Estamos perante uma violação grosseira do Estado de direito”, lamenta o empresário. O Minea, que apresentou uma queixa-crime relativamente à falsificação das cartas atribuídas a Aenergy, refuta a acusação, notando que o Estado de direito “não se compadece com situações de parasitismo oportunista em que os dinheiros públicos, sem qualquer autorização e às ocultas, são usados em benefício de particulares”.
Fonte: Expresso