Cronistas

Lembranças do Joaquim Pinto de Andrade

Depois de em artigo anterior ter falado essencialmente do livro agora publicado, Joaquim Pinto de Andrade – uma quase autobiografia, vou recordar significativos traços do Joaquim, socorrendo-me de passagens do meu depoimento contido nessa obra.

 

Foi na segunda metade dos anos 50 do século XX que conheci o então padre Joaquim Pinto de Andrade, magro na sua sotaina branca, justa ao corpo. Desse padre falava-se em vários meios na Luanda daquele tempo. A burguesia colonial, que aos domingos se deslocava à missa na Igreja da Sé, na Baixa, falava do dom de palavra do padre nos seus sermões, da sua erudição, do requinte com que manejava a língua portuguesa. Nas famílias negras e mestiças ilustres, era o orgulho da sua postura digna perante o sistema colonial (aliás, o pai de Joaquim fora um dos fundadores da Liga Nacional Africana). Nessa pequena burguesia constituída essencialmente por funcionários, J. P. Andrade era acolhido como o filho da terra que fala de igual para igual com o colonizador. Também nos musseques, o padre Joaquim, falando em kimbundu ou em português com as pessoas, inteirava-se dos problemas de cada um e dos problemas sociais. Como vigário da arquidiocese, era aí reconhecido o seu saber e formação em Teologia e Filosofia pela Universidade Gregoriana de Roma e recebia do arcebispo D. Moisés clara protecção.

 

De sorriso aberto, Joaquim Pinto e Andrade apertou-me a mão: “como estás, pá!”. O jovem,  militantemente ateu que eu era, sentiu-se confortado com o calor humano que aquele padre emanava. De facto, na clandestinidade de opiniões e atitudes a que todos eramos obrigados, militando em organizações diferentes, algumas vezes intuíamos quais eram os companheiros da luta, mas mantínhamo-nos reservados e cautelosos. No entanto, foi diferente a postura de Joaquim e, mais, aquele gesto subentendia o necessário e o essencial do momento: «para lá das diferenças ideológicas, religiosas, de etnia ou de cor da pele, somos companheiros de luta, somos irmãos de combate».

 

Estávamos, então, nas instalações da Sociedade Cultural de Angola, tida como instituição de gente de pensamento marxista e nacionalista, onde se realizavam várias iniciativas culturais, como a edição do jornal Cultura, palestras e exposições, sessões de música africana, debates de filmes exibidos pelo cine-clube. A PIDE viria a encarcerar vários dos dirigentes e membros da SCA, em 1959, acabando por a encerrar em 1964. Pois Joaquim Pinto de Andrade começou a frequentar essa famigerada Sociedade Cultural, a estar presente em debates. Desafiava as intimidações da PIDE, dava exemplo de coragem política. Era o ecuménico, era o homem da convivência nacional, era o intelectual angolano de pensamento universal.

 

Depois, Joaquim foi preso em 1960 e deportado, iniciando uma saga de prisões e deportações que durou treze anos. Eu saí de Angola em 1962 e fui procurar as fileiras combatentes, neste caso o MPLA. Voltámos a encontrar-nos no Congo em 1974, estava o Movimento profundamente enfraquecido politica e militarmente, o que ocasionou revoltas e dissidências. Meses mais tarde, Joaquim Pinto de Andrade assumia a liderança do grupo dissidente, Revolta Activa.

 

Cinco meses depois da independência, em Abril de 1976, há uma rusga da polícia política, a DISA, contra membros da Revolta Activa. Quatro pessoas escapam, mas ao fim de semanas e alguns meses só eu é que continuo escondido. Passei mais de dois anos fechado num pequeno apartamento, recebendo de vez em quando alimentos e leituras levadas com muitas cautelas por pessoas a quem estou eternamente grato.

 

Muitos meses depois de eu estar escondido, sozinho, rodou a chave na fechadura. Pensei que era a pessoa que de vez em quando me abastecia. Com espanto vejo entrar o Joaquim com o cesto. Alegria imensa por o rever, e inquietação. Depois do abraço, saiu-me a frase “nunca devias ter vindo aqui, assim estamos a correr grandes perigos”. Resposta do Joaquim: “não te preocupes, os tipos da DISA julgam que já estás morto”. Creio que foi ele que me mandou o livro Cem Anos de Solidão, o que é certo é que falámos da obra. Também nos rimos com as descrições dos muxoxos e do humor com que o povo comentava a situação alimentar, a falta de géneros, a degradação geral, etc. Falámos do arcano, da Bíblia, do marxismo, das bulas papais, das encíclicas.

 

Eu, habituado à solidão de dias e dias, interrompida por alguns momentos de fala com quem me trazia o abastecimento, estava deliciado com a conversa que ora se tornava erudita ora descia ao dichote e à gargalhada (contida porque tudo tinha de ser baixinho). Mais uma vez, Joaquim Pinto de Andrade, de modo temerário, tivera um gesto de solidariedade, um gesto de companheirismo, que me ficou na memória. Tal como em finais dos anos 50, quando ele visitava os presos políticos nas cadeias de Luanda (vítimas da repressão da polícia política portuguesa, a PIDE) ou se dirigia às casas dos seus familiares para conversar, levar conforto e esperança.

 

Depois, da amnistia de Setembro de 1978, fui expulso do País em Janeiro de 1979, tal como Gentil Viana. No novo exílio, passei a viver em Lisboa. Os contactos com o Joaquim tornaram-se raros, ele não tinha facilidade em viajar, em sair do país. Em meados dos anos 80, o Gentil Viana, o Mário de Andrade, irmão do Joaquim, e eu tínhamos formado um Grupo de Reflexão em Lisboa com o objectivo de contribuir para o fim da guerra civil em Angola. Por outras vias bem diferentes chegou o acordo de Bicesse. As esperanças dos angolanos nas eleições de Setembro de 1992 afundaram-se com o recomeço da guerra civil. Uma frustração que a todos nos atingiu.

 

Nas estadias do Joaquim e da Tó em Lisboa revivíamos as nossas experiências, umas individuais, outras comuns: os tempos e locais de infância e adolescência, a Luanda dos areais e dos asfaltos, das famílias tradicionais, o Golungo Alto, o seminário e o liceu, as actividades cívicas, religiosas e políticas, as nossas solidariedades nos momentos difíceis que passámos juntos. Tudo isto pontilhado com uma certa má língua e com sonoras gargalhadas angolanas. A sua prodigiosa memória, as inúmeras histórias que ele tinha vivido, a capacidade de fazer humor sobre sofrimentos próprios, pontilhavam as nossas longas conversas. Grande era a cumplicidade entre nós os quatro, onde sobressaia a que ligava a Lena e a Tó, mulheres de inteligência e coração enormes.

 

Foram intermitentes mas muito intensos os nossos momentos de combate comum e de convívio. Guardo do Joaquim o seu companheirismo, o prazer das conversas com ele, a sua coragem na coerente defesa dos seus ideais quer religiosos quer cívicos face à repressão, em todos os momentos (perante o regime colonial ou perante a ditadura nacional). Em suma, JPA era exemplar no seu patriotismo e na sua postura ética.

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