
Já se sabe que a idade avançada e o acumular de doenças relacionadas com a velhice são factores que levam a Covid-19 a ter uma mais elevada taxa de mortalidade, mas África é o mais jovem continente do mundo… faz sentido aplicar aqui as medidas desenhadas para lidar com a pandemia em geografias envelhecidas como a europeia ou a norte-americana? A resposta de Alex Broadbent, professor na Universidade de Joanesburgo, director do Instituto Sul-africano para o Conhecimento e autor de livros sobre a filosofia da epidemiologia e da medicina, é clara: “Não!”
Para este especialista sul-africano, o maior risco de saúde pública em África não é a pandemia da covid-19, mas as consequências das medidas tomadas para a combater, porque existe um abismo que separa as realidades sociais e económicas entre o continente europeu, a América do Norte ou grande parte da Ásia e o continente africano, desde logo a idade médias dos seus habitantes.
Sabe-se hoje que o maior risco para as pessoas é a idade e África é, de longe, o continente mais jovem em todo o planeta, com todos os indicadores a deixarem claro que a mortalidade entre os mais velhos, especialmente aqueles com mais de 60 anos, é sem sombra de dúvida muito superior à que ocorre entre os mais jovens.
E Alex Broadbent recorda, num artigo de opinião publicado no sul-africano Mail & Guardian, que em África os homens morrem normalmente antes dos 60 anos, sendo a idade média no continente pouco superior aos 18 anos, quando na Europa é superior aos 42 anos, o que deve levar os decisores políticos a pensar se, efectivamente, existem razões para que África receie de igual modo esta doença provocada pelo novo coronavírus como sucede em latitudes onde a média de idades é muito superior.
E lembra ainda que entre as principais doenças que facilitam os efeitos nefastos da covid-19 estão, geralmente, doenças relacionadas com idades mais avançadas.
Face a isto, nota, as fortes restrições à mobilidade popular – lockdown, a expressão inglesa em uso comum – são de duvidoso efeito, até porque em África incidem sobre milhões de pessoas que vivem no e para o dia-a-dia, que, sem a subsistência garantida, “simplesmente não vão obedecer às imposições deste tipo de restrições” associadas a estados de emergência para debelar a pandemia.
A par desta realidade, há ainda que ter em conta que decorrem outras consequências, como as económicas, porque a perda de vigor na economia leva anda mais pessoas para vidas abaixo do limiar da pobreza sendo bom exemplo o que sucedeu com a crise de 2008, onde mais 5 milhões de crianças passaram a ter fome por essa causa.
“Pode a comunidade internacional ter percebido isto tão erradamente? Podem os líderes regionais ter sido tão mal aconselhados? Porque estamos a olhar para a Covid-19 de forma tão séria e intensa se a ameaça que esta coloca é muito menos séria em África que noutros locais do mundo, e os custos das restrições à mobilidade muito mais pesados em África que noutros continentes?” , questiona Alex Broadbent, também autor de livros como Filosofia da Epidemiologia e Filosofia na Medicina.
Uma das possibilidades para justificar esta actuação é que os líderes africanos, mesmo estando cientes desta realidade, não poderem actuar de outra forma porque a percepção dos seus povos, fomentada pela informação e pela pressão mediática, é que é urgente actuar deste modo, não lhes deixando “nenhuma saída” que não seja aquilo que se está a ver, porque a covid-19 está a assustar toda a gente, ricos e pobres, e a “necessidade de demonstração de forte liderança emerge como um consenso sem alternativas”.
E, no entanto, destaca Alex Broadbent neste texto do Mail & Guardian, em África existem várias doenças muito mais preocupantes que a covid-19, que colocam riscos mais sérios à vida humana, incluindo as pneumonias, mas com destaque para as infecções bacterianas ou virais do tracto respiratório, responsáveis por um grande número de mortes no continente.
“A covid-19 pode aumentar este risco, mas está longe de ser uma forte preocupação e muito longe daquilo que é o risco que provém da fome causada pela recessão”, aponta. E este académico questiona com clara intenção de gerar o debate.
Estaria África tão empenhada e preocupada com o aumento do risco de pneumonias fatais em consequência da covid-19 se estas não aumentassem grandemente o risco de pneumonias fatais para os governantes, homens de negócios ou, entre tantos outros, professores universitários?
“E nem vale a pena vir dizer que esta doença vai, no geral, matar mais pessoas, porque, de longe, a doença mais perigosa da história da humanidade é a malária, doença que pode ser prevenida com redes mosquiteiras. Quase ninguém morre à nascença ou de pneumonia nos países desenvolvidos, mas nos países em desenvolvimento, segundo a Unicef, 5 milhões de crianças morrem todos os anos de pneumonia, malária e por complicações à nascença” , descreve. E, destaca Alex Broadbent em forma de provocação:
Nós não queremos saber da covid-19 por causa de quantos mata, mas por causa de quem mata!
E, por causa disso, “estamos a fazer em África o que se está a fazer no resto do mundo, sem grandes resultados, como se vê pelos números”.
Mas há alternativa então às restrições de mobilidade em curso em todo o lado? , “sim”, responde, adiantando: “Proceder às restrições de acesso popular onde faz sentido apenas e onde estão as pessoas mais idosas, mas não tentar impedir o acesso onde é evidente ser impossível fazê-Io.”
“As quarentenas regionais são mais efectivas em África”, defende, sublinhando que no continente, mas também noutras geografias em desenvolvimento, “as pessoas mais velhas que vivem nas cidades tendem a deslocar-se para as áreas rurais”, onde é “mais fácil separar as pessoas de maior risco – idosas – das mais novas do que em subúrbios onde vivem amontoadas milhares de pessoas, e nos quais a proibição da mobilidade não faz sentido”.
Ou seja, o lockdown africano deve incidir onde este faz sentido e tem forma de obter sucesso, nas áreas rurais, habitadas pelas pessoas mais velhas, protegendo-as, efectivamente, e não nos centros urbanos, onde vivem as pessoas mais jovens.
“Os líderes africanos têm de perceber rapidamente que existem diferenças abissais entre o continente e os países onde foi criada a ideia da restrição total de mobilidade como forma de combater a pandemia” , diz, referindo-se ao que distingue, por exemplo, a realidade europeia – um continente envelhecido e onde a pandemia é um risco substancial – e a realidade africana, onde a juventude é largamente maioritária, diminuindo significativamente o risco provocado pela Covid-19.
Como pano de fundo para esta tese estão os números da pandemia relativos ao continente africano, onde, apesar de estar já à beira dos 800 mortos e quase 15 mil casos registados em 52 países, de acordo com a mais recente actualização dos dados da pandemia, quando comparado com outros, é um “oásis”, como se pode verificar comparando com apenas um país como Portugal, com apenas 10 milhões de habitantes – África tem 1,3 mil milhões – existem agora* 17 mil casos de infecção e o número de mortes subiu para perto dos 550.
Em Angola, onde estão confirmados 19 casos, com duas mortes entre estes, não há registo de novas infecções há já cinco dias, o que se deve às medidas no terreno para combater a pandemia, mas essa não pode ser a única razão, porque noutras paragens, com medidas mais duras, a doença tem avançado de forma mais agressiva na comunidade, o que deixa pressupor existirem factores climáticos associados a esta realidade.
Até porque, as regiões de África mais afectadas, sul e norte extremos do continente, são aquelas cujo clima mais se assemelha ao das geografias mais afectadas, como a europeia, menos húmido e quente, condições que a ciência começa a admitir como barreira natural, embora por confirmar, ao avanço da pandemia.
No entanto, sublinhe-se, esta tese de Alex Broadbent não é consensual, inclusive no seio da Organização Mundial de Saúde, que mantém como conselho sólido o reforço da capacidade de testagem, as restrições de mobilidade, sublinhando fortemente o “fiquem em casa”, embora confirmando que os apinhados subúrbios africanos são um local de grande risco para a dispersão da pandemia.
UA cria task force para conseguir apoio internacional
Entretanto, a União Africana (UA), por iniciativa do seu actual presidente, o sul-africano Cyril Ramaphosa, criou uma task force com o objectivo de trabalhar com as instituições financeiras internacionais, desde logo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial, a União Europeia e o G20, organismo que agrega os 20 países mais ricos do mundo.
Esta equipa é integrada por algumas das mais destacadas figuras da economia africana, com, entre estes, o antigo ministro das Finanças da África do Sul, Trevor Manuel, ou Donald P. Kaberuka, o ruandês que liderou o Banco Africano de Desenvolvimento entre 2005 e 2015.
O objectivo desta dream team é claro: conseguir mobilizar apoio internacional para financiar o combate à pandemia da covid-19 no continente africano, como, de resto, foi sobejamente prometido por esses mesmos organismos e entidades internacionais.
Recorde-se que o Presidente da África do Sul e actual líder da UA, Cyril Ramaphosa, tem sublinhado a importância de as entidades financeiras internacionais não esquecerem a importância de apoiar o continente africano no combate à covid-19, sublinhando as palavras do director-geral da OMS, o etíope Tedros Adhanom Ghebreyesus, onde este destaca que se permanecerem bolsas da infecção da covid-19, mais cedo ou mais tarde, a pandemia regressa ao resto do mundo, podendo África, devido à escassez de meios, subsistir como esse último reduto do novo coronavírus quando este estiver extinto no resto do planeta.
Mas Ramaphosa tem sublinhado igualmente os efeitos devastadores da pandemia nas economias africanas, onde se esperam efeitos prolongados e de dificuldade extrema para debelar nos próximos anos, como a subida do desemprego e a recessão generalizada, sendo “urgente” o apoio internacional para minimizar esse impacto.
O que está em cima da mesa é a criação – como Trevor Manuel e companhia, onde se destaca ainda Tidjane Thiam, o costa-marfinense que liderou o poderoso Credit Suisse nos últimos cinco anos, vão tentar conseguir – de um alargado pacote financeiro criado especificamente para as economias africanas de forma a ajudá-las a enfrentar o ciclo económico negativo que se avizinha, especialmente nos e a partir dos países com forte dependência das exportações de matérias-primas, desde logo o petróleo, como Angola ou Nigéria, mas também diamantes, onde sobressaem Angola, África do Sul, Botswana e outros, e os minerais fundamentais às novas tecnologias, nos quais se destaca a RDC.
Para isso é fundamental a acção do FMI e do Banco Mundial, instituições que já têm pedidos de ajuda financeira extraordinária da maior parte dos países africanos mais afectados, como têm recordado amiúde as suas lideranças.
Mais de 20 países com a corda no pescoço, viram-se para o FMI
O FMI divulgou no seu site oficial que pelo menos 30 países da África Subsaariana já fizerem ou vão fazer em breve pedidos de financiamento de emergência para lidar com o impacto da pandemia da covid-19 nas suas debilitadas economias.
Esta informação surgiu quase ao mesmo tempo que o Departamento de África do FMI, através do seu director, Abebe Selassie, no fim de Março, veio alertar para a garantida revisão de forte baixa no crescimento previsto para a região da África Subsaariana por causa da pandemia do novo coronavírus, especialmente fruto das dificuldades que estes Estados estão a sentir para impor as medidas de combate ao alastramento da covid-19, como o isolamento social, e ainda porque o petróleo está num ciclo longo de fortes quedas, com reflexo profundo nas economias dos países exportadores.
A lista dos 30 países, 20 que já pediram ajuda de emergência e 10 que o vão fazer em breve, não foi divulgada integralmente, mas o Gana é um deles e avançou com um pedido lancinante para poder financiar o seu plano nacional de combate à pandemia.
Por tudo isto, o crescimento nesta parte do continente, onde serão raras as excepções, será atingido com violência, embora o FMI não tenha estimado esse impacto com precisão, sublinhando apenas que será “duro” , atirando para meados de Abril mais informação com detalhe sobre este impacto na parte subsaariana do continente.
Uma parte deste impacto provirá da descida dos rendimentos provenientes das matérias-primas exportadas, mas outra parte advirá do fecho de fronteiras, com a subsequente quebra no sector do turismo, perdendo-se milhares de empregos, provocando menos investimento público, com um incisivo corte no modo de vida das famílias, para além da ruptura nas cadeias de abastecimento locais e dos mercados de importação, nota o FMI.
O FMI estima mesmo que por cada 10% de quebra no valor do barril de petróleo, vai resultar numa quebra de 0,6% nos países exportadores e aumentar os défices fiscais em 0,8% do PIB.
Como contramedidas para este cenário preocupante, o FMI insiste na velha fórmula de desvalorização das moedas nacionais, como, por exemplo, a Nigéria já fez com a Naira, embora aconselhe igualmente a manutenção do investimento público, especialmente no sector da saúde.
(Ricardo Bordalo)
*À data da publicação deste texto na Vivências Press News, os infectados em Portugal ascendem a 18.091 e as mortes a 599.
Fonte: Novo Jornal