Luzia MonizOpinião

No meu sonho…

Hoje sonhei que dois polícias portugueses (negros) bateram com “cassetadas” num jovem estudante universitário português (branco), na zona de Cascais.

No meu sonho, os polícias confundiram o jovem com um assaltante de ourivesarias, dadas as semelhanças de fenótipo.

Esse incidente, gravado por câmaras de vigilância das ruas do Município, rapidamente se transformou num caso com direito a notícia de abertura de todos os telejornais e agitação na sociedade. A cor da pele dos polícias, nunca explicita, esteve sempre presente no desenrolar do caso.

No meu sonho, o Ti Celito alterou toda a sua agenda, deslocou-se a casa do jovem com ferimentos no braço esquerdo, conversou com os pais e manifestou a sua solidariedade com a família indignada. Sempre acompanhando do habitué batalhão de jornalistas.

No final, fez declarações à imprensa centradas em três eixos: reafirmar que Portugal não é um país racista e que não podemos tolerar atos racistas, que temos boa polícia, mas é necessário prestar maior atenção à sua formação e que se apurem todas as responsabilidades.

Todas as televisões abriram os telejornais com este assunto, deixando para segundo plano o assassinato por americanos, nesse mesmo dia, de Maduro da Venezuela (país que alberga cerca de meio milhão de portugueses e luso-descendentes) e a consequente guerra civil com barricadas de militares e milícias pro chavista e pro Guaidó em confrontos nas ruas de Caracas.

No meu sonho, os especais informação nas rádios e TV com diretos a partir de vários locais mais ou menos inusitados, desde a universidade a rua da namorada do jovem vítima eram fastidiosos. Nada escapou.

Falaram com comandantes da polícia reformados, sindicatos de polícia, advogados, politólogos, sociólogos, psicólogos, outros investigadores, médicos, políticos, comentadores, analistas e autarcas.

A TVI, no seu especial de mais de seis horas consecutivas, fez debates com o diretor do Hospital de Cascais onde a vítima fora atendido, com o médico que suturou o braço, a enfermeira que fez o curativo, a irmã, a quem pagou a viagem dos Estados Unidos para Portugal, vizinhos, até o homem do quiosque de jornais mais perto. Só faltou a “senhora lá de casa” (expressão da jornalista Judite de Sousa, quando se refere à sua empregada doméstica negra).

No meu sonho, os partidos de A. Cristas e de S. Lopes, mais no extremo direito da sociedade, responsabilizaram o primeiro ministro pela ação dos policias negros. A culpa é “deste” primeiro ministro, alardeavam.

Um Machado do Movimento fascista português aproveitou a dica para criar um Slogan “Este, Não!”, com qual se apresentou nas rádios e TV e manifestações por si organizadas em Lisboa e periferia.

Os movimentos, associações e grupos afrodescendentes e anti-racista também não se calaram. Uniram-se na denúncia. Diziam que os polícias estavam a ser vítimas de perseguição racial. Criaram uma campanha “Policia bom não tem cor” e angariaram fundos para pagar aos melhores advogados da praça.

Ladeado pela ministra da Justiça e pelo titular da Administração Interna, o primeiro ministro deu uma conferência de imprensa (sem direito a perguntas) reafirmando que as autoridades estão a fazer tudo para o “cabal esclarecimento” dos factos e manifestou todo apoio ao jovem ferido e sua família, apelando à calma e repudiando comportamentos rácicos e xenófobos.

No meu sonho, os dois policias negros, nascidos em Portugal, filhos de cabo-verdianos e netos de portugueses, foram imediatamente suspensos, foram-lhes instaurados processos disciplinares. O chefe da esquadra a que pertenciam foi afastado e para o substituir foi nomeado um oficial da polícia com “competência à prova de bala”, mas não sem antes ver a sua ancestralidade passada, discretamente, a pente fino.

Em Queluz, a casa da mãe de um dos policias foi atacada por vândalos de cara tapada. Amedrontada, a senhora natural de Benguela, filha de cabo-verdianos, pediu e recebeu proteção da Embaixada de Cabo Verde.

No meu sonho, o enviado especial do principal jornal de Cabo Verde ouviu um sociólogo português, que trabalhou na ONU, explicar que o alarme social radica no facto desse “episódio” estar “fora do padrão” da sociedade, resultado da complacência das elites com o racismo estrutural. O mesmo jornalista publicou uma entrevista com um dos dois policias negros intitulada: “Estou arrependido de não ter tratado nacionalidade cabo-verdiana”.

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