Editorial

A Voz Valiosa de Viva Voz

Os chamados profissionais de Voz Valiosa são pessoas cuja voz é essencial para a sua profissão. As cordas vocais são estruturas musculares que podem e devem ser exercitadas, mas sem muitos excessos. Estes profissionais devem preservar este bem valioso que é a voz, existem casos de profissionais do ramo que até têm seguros para acautelar uma eventual perda de voz (acontece muito nos meios artísticos, mas também já ouvi falar de casos na comunicação social). Um cenário desolador é também quando um profissional de Voz Valiosa, por razões técnicas ou administrativas, se vê impedido ou impossibilitado de fazer ouvir a sua voz de viva voz. É um pouco das situações pelas quais estão a passar neste momento, os profissionais de Voz Valiosa das rádios públicas em Angola e em Portugal.

Em Portugal, o Conselho de Redacção do Serviço Público de Rádio, do grupo RTP, escreveu, em Fevereiro, uma carta à ministra da Cultura (organismo do Governo com a tutela da comunicação social), por considerar que “a realidade da Informação do Serviço Público de Rádio já ultrapassou todos os limites aceitáveis” e pedem à ministra Graça Fonseca que ajude a melhorar as condições de trabalho dos funcionários. Em Angola, um grupo de profissionais da Rádio Nacional de Angola (RNA), foi afastado, porque no entender do conselho de administração da instituição estavam numa situação de “duplo vínculo laboral”, o tal caso das incompatibilidades laborais. O Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA), através do seu secretário­‑geral, Teixeira Cândido, garantiu que vai apoiar os seus filiados a intentarem uma acção judicial contra a RNA. “Vamos ajudar os colegas a intentar uma acção para ver se conseguem reaver o direito de continuarem a trabalhar para a RNA, e é isso que esperamos que resulte”, explicou. Além dos casos destes profissionais afastados por alegada incompatibilidade laboral há o caso daqueles que abandonaram definitivamente a emissora nacional por causa das más condições salariais, e, actualmente, há mesmo já uma ameaça de greve para os próximos dias que foi já veiculada na reunião que os trabalhadores tiveram com o SJA há poucos dias. 

A qualidade da democracia está directamente relacionada com a qualidade da informação, da formação, da educação, da cultura cívica e política. O jornalismo livre, independente e de qualidade sempre foi vital para a construção de um espaço público dinâmico e para a chamada cidadania de alta intensidade. Um jornalismo assim será sempre como um antídoto dos abusos de poder, da corrupção, das disfuncionalidades das instituições públicas, dos atropelos cometidos e de certas tiranias individuais que vão fazendo o seu caminho. A falta de profissionais e de meios técnicos, está a deteriorar a qualidade da informação produzida pelas rádios públicas de Angola e de Portugal e, com isso, a pôr em causa o cumprimento das obrigações de serviço público – havendo mesmo quem já diga que, nos dois casos, não é sério ou real dizer que há um serviço público de rádio. Hoje a questão é saber se os Estados (dos países em causa) querem ter “um serviço público de rádio com uma indispensável e forte componente de informação, que corresponda aos expectáveis padrões de excelência de um verdadeiro serviço público, ou a intenção é ir deixando definhar a rádio até que a sua existência seja considerada irrelevante”. 

Há hoje um sentimento intrínseco a cada jornalista que é o medo. O medo de ficar sem emprego, de contrariar as orientações superiores das administrações ou dos donos, o medo de fazer diferente, de arriscar uma abordagem divergente do pensamento dominante, o medo de não cumprir uma agenda. Um medo que, na maior parte das vezes, transporta os jornalistas para um permanente estado de autocensura. A autocensura é talvez a mais perversas das censuras. A tal liberdade de informação é um processo diário, feito muitas vezes de autocensura. Os poderes políticos e económicos são as maiores ameaças à imprensa livre, se no caso português há uma tentativa permanente de interferência dos agentes políticos nos órgãos públicos de informação, no caso angolano esta é uma realidade bem visível. Talvez no caso da RNA o problema resida aí mesmo: no excesso de interferências políticas fazendo com que haja Estado a mais na instituição. O excesso de interferências vindas do Ministério da Comunicação Social, do Gabinete de Comunicação Institucional e Imprensa do PR, do Departamento de Informação e Propaganda (DIP) do MPLA, sem contar que já não existe o Grecima, em nada ajudam na gestão do serviço público de rádio. A criação de um Conselho Geral Independente (CGI), à semelhança do que existe em Portugal com a RTP, ajudaria a eliminar este excesso de interferências, ajudava a melhorar a gestão da RNA e eliminaria certas “incompatibilidades” de egos. 

O CGI herdaria as competências que antes estavam na tutela do Executivo, mas a RNA permaneceria pública, o que retiraria o peso institucional do Estado (ainda que a empresa continuasse a ser financiado pelos contribuintes), o Governo transferiria para este novo órgão a maioria dos poderes que detém, cabendo ao Executivo garantir o seu financiamento. O peso do Estado na RNA ficaria reduzido ao seu financiamento e à nomeação de dois ou três membros do novo órgão. Alguns representantes seriam indicados pelo Conselho de Redacção da RNA e outros pela sua Comissão Sindical. Assim, e como se verifica na RTP, o CGI da RNA não “teria poderes de gestão”, mas “teria a incumbência de nomear a administração e o seu presidente, bem como definir e prosseguir, em conjunto com a administração, as grandes linhas de orientação da empresa”. Este CGI teria também a missão de supervisionar e fiscalizar a acção do Conselho de Administração da RNA e avaliar o cumprimento da estratégia de gestão. Tendo também o GCI competências para destituir o conselho de administração quando se verificassem incumprimentos daquela estratégia ou a incapacidade permanente da administração para gerir a instituição. Outro dado importante: os membros do CGI não têm obrigatoriamente de ser jornalistas.

Todas as instituições têm uma alma, alma que é proporcional à sua dimensão. Uma espécie de entidade moral e de referência (além das jurídicas e administrativas). São elas que fazem a história e marcam as instituições. Hoje, em muitas instituições, os jornalistas são apenas peças de uma engrenagem que toma uma velocidade impossível de travar, havendo apenas duas opções a tomar: saltar do comboio ou adaptar-se à corrida. Vamos observando com tristeza a rádio pública (que é sustentada com o dinheiro dos contribuintes), a descartar jornalistas seniores e a ficar sem memória, tudo por causa de uma “incompatibilidade de egos” e de afirmação de poderes. Redacções cada vez mais jovens e inexperientes como resultado de uma estratégia de apagar um passado que não se quer presente. Uma espécie de amnésia selectiva que visa apagar uma memória colectiva. Este tem sido um debate que já deixou de ser político, que ganhou força no mundo virtual e que tem contornos mediáticos. Profissionais que em tempo da ditadura eram censurados e que hoje, em pleno regime democrático, são literalmente excluídos. Será que já não é sério dizer que há um serviço público de rádio em Angola? Será que haverá mesmo greve e a rádio pública vai parar? Qual será a gravidade da greve? Ou será que se vai fazer como se tem acontecido com a rádio pública em Portugal: alimentar um novo facto para desvalorizar o que se pretende abafar? 

As Vozes Valiosas nas rádios públicas de Angola e de Portugal vão perdendo voz, vão desaparecendo em nome das incompatibilidades e da “sangria” de jornalistas de um lado e, do trabalho precário e da falta de perspectivas de futuro do outro lado. Para a RNA como para a Rádio de Serviço Público de Portugal pode certamente valer uma espécie de “solução Tiririca”: Pior do que está não fica! 

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