Cronistas

O trauma do 27 de maio. Para quando a catarse?

Reproduzimos aqui com a devida autorização e permissão, o texto de Adolfo Maria , do livro ” Angola – Contributos à reflexão ”  em que faz uma abordagem sobre o 27 de maio de 1977. 

Assinalando-se, no Sábado os 40 anos desde os trágicos acontecimentos do 27 de maio, eis aqui um registo escrito por um nacionalista por convicção, jornalista por vocação e escritor por ” imposição histórica ” , que é Adolfo Maria.

Passou mais um aniversário do golpe de 27 Maio de 1977, cujas consequências foram terríveis para milhares de famílias e para Angola. Para quando a catarse desse trauma? Como eu já anteriormente dissera, o golpe foi o culminar de uma encarniçada luta pelo poder entre Nito Alves e Agostinho Neto, então presidente do MPLA e do país. Ambos tinham a mesma natureza: um exacerbado gosto pelo poder, uma total intolerância face a adversários, intolerância que podia chegar ao extermínio. Nito Alves subiu no aparelho do MPLA porque Neto, enfraquecido que estava em 1974, recorreu a indivíduos do interior para refazer forças e combater os seus adversários. Assim é que, no Congresso de Lusaka para reunificação do MPLA, em Agosto de 1974, Neto pôs dois homens do interior a discursarem contra a Revolta do Leste e, principalmente, a Revolta Activa, duas tendências do MPLA que contestavam os métodos da direcção do Movimento. Foram eles Lopo do Nascimento e Nito Alves, este vindo da lendária Primeira Região. A partir daí, Nito Alves foi subindo na hierarquia do MPLA e viria a fazer parte do governo. Nito e Neto estavam juntos na ideia e na acção de extermínio de todas as oposições: a dos partidos concorrentes, FNLA e UNITA, e das dissidência ou correntes de opinião dentro do MPLA. Foi assim que, em 1975, ainda antes da independência, foram aniquilados militarmente em Luanda os outros dois movimentos de libertação e foram dissolvidos os Comités Henda e Comités Amílcar Cabral, grupos que tinham ajudado o MPLA a implantar-se e crescer em Luanda. O novo agrupamento, a OCA, que se formara com alguns elementos dos CAC, foi também alvo de repressão e alguns dos seus membros foram presos. Poucos meses depois da proclamação da independência, Nito Alves fez um violento ataque público a membros da ex-Revolta Activa (que deixara de existir pouco depois dos acordos de Alvor) e também da OCA. Nito Alves afirmou que deviam ser banidos da vida nacional e sofrer todas as consequências. Duas semanas após o discurso de Nito Alves, em 13 de Abril de 1976, portanto cinco meses depois da independência, começaram as prisões de vários elementos da ex-Revolta Activa, por ordem do Bureau Político do MPLA. (Aqui um parêntesis para lembrar que alguns membros da ex-Revolta Activa vinham a negociar desde Fevreiro de 1975 a sua reintegração no MPLA, como militantes de base) Entretanto, a luta entre Nito Alves e o presidente Agostinho Neto crescia. Ao nível nacional, Nito Alves, como ministro da Administração Interna, nomeava governadores provinciais que partilhavam as suas ideias e propósitos, e simultaneamente recrutava numerosos seguidores nas forças armadas, as FAPLA, e na tenebrosa polícia política, a DISA. Nas várias cidades, particularmente em Luanda, os adeptos de Nito procuravam controlar as comissões de bairro com vista às eleições para a instalação do chamado poder popular, cujo objectivo era o controle dos bairros pelo MPLA. A batalha política do poder popular foi o primeiro grande embate público da tendência Nito e da tendência Neto, depois da independência. A disputa entre as duas tendências prosseguiu em todos os orgãos do MPLA, nas suas organizações de massas, nos aparelhos militar e repressivos (eram vários – DISA, Polícia, milícias), em órgãos de comunicação social controlados por um ou outro. Nos inícios de 1977, tornou-se evidente que Nito e Neto já não podiam coexistir e cada um arquitectou o golpe final. Nito Alves preparou o assalto ao poder e Agostinho Neto preparou a armadilha a Nito Alves e seu grupo: inquérito do Comité Central às actividades de Nito e José Van Dunem, sua expulsão do Comité Central, ameaças de punições, campanha desenfreada dos meios de comunicação estatais (só havia esses) contra os chamados fraccionistas e ataques explícitos a Nito Alves. E assim se deu o golpe de 27 de Maio conduzido por Nito Alves, com a tomada, em Luanda, de quartéis, da Rádio Nacional e da cadeia de S. Paulo e acções semelhantes em várias cidades do país. Apesar de a tendência de Neto esperar e desejar uma acção pública rebelde conduzida por Nito Alves para depois retaliar, foi surpreendida pela amplitude da adesão de elementos das FAPLA, o que obrigou o presidente a solicitar a acção das forças cubanas estacionadas em Luanda, que obrigaram os revoltosos a abandonar as suas posições. Quando, ao fim da tarde, a situação ficou controlada pelos dirigentes em exercício, Agostinho Neto fez uma proclamação que terminou desta forma: “não haverá perdão”. E, de facto, não houve: nem para os dirigentes da facção de Nito Alves, nem para qualquer membro do exército e da DISA ou outros que, de longe ou de perto, tivessem colaborado com Nito Alves. Durante meses e meses, depois do golpe de 27 de Maio, as cadeias enchiam-se para depressa serem esvaziadas, de madrugada, com pessoas que eram conduzidas ao fuzilamento sumário. Dezenas de milhares de pessoas pereceram assim, a grande maioria jovens. O país sofreu uma hemorragia terrível em jovens e quadros, O luto atingiu milhares e milhares de famílias, um luto que dura até hoje porque os corpos, sepultados em valas comuns, nunca puderam ser resgatados. Para a Direcção do MPLA e para as autoridades governamentais, esses mortos não existem. Há a sua certidão de nascimento, não há a sua certidão de óbito, aquela que permite fazer o verdadeiro luto, aquela que permite pedir uma pensão ao Estado. A repressão pós 27 de Maio de 1977 é um acontecimento que mancha de sangue a história do MPLA (infelizmente não o único) e é um trauma colectivo. Trinta e seis anos se passaram e ninguém do poder, seja da governação, seja do MPLA, tem a coragem de vir falar da tragédia para reconhecer que foi um grave erro político, um brutal atropelo dos direitos humanos e para exortar o país a proceder de modo a que tal não volte a acontecer. A atitude que tem havido por parte do poder incita à manutenção de profundos ressentimentos. Penso que, no seio do MPLA, devia começar o debate sobre o que foi o 27 de Maio, o porquê de se ter chegado àquela situação. Responder a esta questão ilumina muito sobre o presente e é bem mais útil que procurar as culpas de cada um no processo, sejam os revoltosos, sejam os que detinham o poder. Mas o debate deve estender-se à sociedade civil, nele devendo participar personalidades do país, nomeadamente líderes religiosos. Se, num amplo debate, for analisado o que se passou, vão tirar-se úteis conclusões para o presente e uma delas, essencial, será certamente esta: Angola constrói-se com todos e a exclusão só favorece uma desertificação favorável aos desmandos. Tem de haver da parte de todos os responsáveis políticos (do poder e da oposição), da parte de personalidades dos vários campos: académico, económico, cultural, social, religioso uma vontade de analisar o porquê de tanta repressão dos primeiros anos da independência, o porquê de tantos silêncios sobre esse período, o porquê de, no país, ainda haver pessoas proscritas (muita delas deram o melhor da sua vida à luta pela independência), o porquê de tanta relutância na aceitação do outro nas suas diferenças, o porquê da dificuldade em se construir e fazer funcionar um verdadeiro estado de direito em Angola. Essa discussão, que pode começar em cada sector da sociedade angolana, terá de evoluir para uma discussão colectiva donde saia uma formulação de princípios sobre a reconciliação nacional e de meios para a sua concretização. É mais que tempo para, em Angola, se fazer a pacificação dos espíritos que deverá ser bem mais que um simulacro de reconciliação nacional. Uma verdadeira reconciliação nacional não se decreta, constrói-se. E como? Com inteligência, bom senso, sensibilidade e espírito patriótico. *29 de Maio de 2013 texto de base para a intervenção no programa DEBATE AFRICANO da RDP África

Anunciamos que brevemente , Adolfo Maria irá assinar uma coluna com crónicas semanais na Vivências Press News. 

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