Os “Adiantadores” e os “Abafadores”

Há poucos dias um amigo desabafava comigo sobre o momento que estava a viver profissionalmente, e que pressentia que certas pessoas próximas de si, estavam a ” adiantar à sua morte ” . Isto acontece quando alguém , agindo de má-fé e de forma dolosa , prática actos ou acções que, na visão dos demais configura um cenário de verdadeira antecipação de morte alheia . E aí surge o ” Adiantador” .
O” Adiantador ” lida e convive com a sua vítima, tendo com ela uma relação de amor e ódio . Ele parece um toureiro na arena, com a missão de provocar a morte lenta do animal. E fá-lo perante uma plateia que assiste com vigor ao espectáculo. O animal é massacrado sem piedade . A sua morte é preparada, planeada e antecipada, o ” Adiantador ” faz isso por pura necessidade existencial : ele precisa de matar para sobreviver. O instinto é mais forte do que ele. ” matar ” é preciso ” ! A vítima é previamente seleccionada e a sua morte é antecipada, é planeada e orquestrada. A escolha da vítima não se afigura difícil , basta ser alguém que se destaque entre os demais. E os critérios são básicos : iniciativa e pensamento próprio . Basta que tenha luz própria, que brilhe, que tenha ideias que ultrapassem a pobre e maquiavélica imaginação do ” Adiantador ” . Para ele , e seus auxiliares de serviço ( eles actuam na maior parte das vezes em bandos, em grupos , como as hienas ), isto funciona como um apetite e obstinação para criar o cenário adequado à ” morte” profissional e antecipada da vítima .
O ” Adiantador ” é um matador nato. Ele é adverso ao desenvolvimento, ao livre pensamento e ao crescimento . Inovação, talento, autonomia, liberdade e criatividade são termos que lhe provocam arrepios e insónias . O ” Adiantador” é um controlador daquilo que não consegue controlar. É um matador daquilo que é imortal . Há nele uma rejeição de tudo o que é novo, que traz qualidade e, até certo ponto, alguma credibilidade à sua organização . Numa sociedade crescentemente globalizada, ele não sabe lidar com a alteridade. Vive no seu mundo. Há nele uma leitura redutora e, em todos os pontos maldosa dos factos. Falta- lhe uma perspectiva de futuro, porque o futuro para ele não interessa, pois se necessário for, ele também o antecipa . Ele leva a sério, e cumpre com zelo , dedicação as suas funções de ” Adiantador ” de ” mortes profissionais ” . Para ele, o que não se explica, implica .
O ” Adiantador ” é um abafador dos tempos modernos . ” Abafador ” é aquela figura sinistra que o médico e escritor Miguel Torga descreve nas obras ” Alma Grande” e em ” Novos Contos da Montanha ” . O homem que nas aldeias abreviava a vida dos moribundos. ” Entrava, atravessava impávido e silencioso a multidão que há três dias, na sala, esperava impacientemente o último alento agonizante, metia-se pelo quarto adentro, fechava a porta e pouco depois saía com uma paz no rosto, pelo menos igual à que tinha deixado ao morto ” . O ” Abafador” , neste caso, sufocava o moribundo fazendo uso de almofadas. O ” Abafador ” só aceitava actuar se o moribundo já se tivesse confessado e comungado. Ele era um mensageiro da ” boa morte ” .
O ” Adiantador ” precisa de abafar tudo e todos à sua volta, com excepção, claro, dos seus zelosos auxiliares. Ele precisa de reinar, precisa de ser um Rei no seu castelo. O seu castelo é a sua zona de conforto. É o seu último reduto, a sua última fronteira . É lá onde impera e se impõe toda a sua pompa e majestade.
O ” Adiantador ” é na verdade um admirador da sua ” presa” . Ele é o violador que se apaixona pela vítima, depois de abusar dela vezes sucessivas sem dó nem piedade. É na realidade uma admiração escamoteada, nunca assumida. O ” Adiantador ” tudo quer, tudo cobiça, e chega até a convencer – se de que pode substituir ou alterar toda ordem natural das coisas. Ele aspira ser eterno, único, ser absoluto seio da organização ou empresa que dirige ou onde exerce cargo de chefia. Ele vive obcecado por isso até ao dia em que percebe que jamais irá atingir a almejada dimensão absoluta. Porque aquilo que ele quer aniquilar ou ” apagar” tem na realidade mais luz e poder do que ele . A ” presa” tem, invariavelmente , uma dimensão cultural, espiritual, intelectual e humana que ele não possui . E é curioso que, embora agindo como tal, o ” Adiantador ” não gosta de assim ser chamado ou tratado, porque acha que o retrato não lhe faz justiça .
É triste ver que a arrogância , a inveja e a intriga são cada vez mais as características dominantes de muitos seres humanos. Perigoso e decepcionante é o caminho que muitos destes ” Adiantadores ” estão a trilhar. A apologia da exclusão profissional silenciosa faz deles as suas próprias vítimas. Um dia beberão do seu veneno e, no final da história , acabarão por antecipar a sua própria morte. Chegará o dia em que o ” Adiantador ” acabará sendo antecipado pela realidade dos factos. Antecipado pelas evidências . E aí , então, lixar-se-ão duma vez por todas.
Embora a situação relatada por este amigo e colega de profissão ( jornalista como eu ), fosse do universo labora, o certo é que há ” Adiantadores ” no seio familiar, académico e até ao nível do casamento e dos relacionamentos . Onde uns vão ” adiantado ” ou “abafando ” outros .