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Pepetela: “Sua Excelência, de Corpo Presente?” Poder, política e ficção

Ironia e sátira para compreender o presente. Em Sua Excelência, de Corpo Presente, Pepetela toma o pulso às derivas totalitárias que cada vez mais marcam este início do século XXI. Uma história universal, aqui apresentada pelo escritor angolano, já distinguido com o Prémio Camões.

JL : O que é, e o que conta, este seu novo romance, Sua Excelência, de Corpo Presente ?
Pepetela: A acção passa-se em África, num país não especificado. O Presidente está morto, recebendo as últimas homenagens dos que vão ao palácio desfilar perante o seu corpo. Apesar de morto, ouve, vê, entende. Consegue mesmo adivinhar alguns pensamentos dos que o amaram ou odiaram , ou apenas se colaram a ele para obter alguma vantagem, particularmente por parte da sua numerosa parentela, a que herdou (irmãos, sobrinhos, primos) e a que constituiu (mulheres e filhos). Tem tempo para lembrar o passado e nos dar a conhecer como cresceu e chegou ao poder supremo. Cada um com as suas peculiaridades, mas num caminho semelhante aos que outros chefes de Estado construíram. É ocasião para aparecerem os personagens, um a um, perante o seu esquife. E ele tem uma história ou uma lembrança para cada um dos que se destacaram por terem estado próximos. Adivinham-se mudanças com a sua morte e ele reflecte sobre os diferentes cenários possíveis, com a perspectiva de a família enfrentar problemas se a sucessão não for para alguém da sua confiança.

Isso lembra-nos alguma coisa …
Pode-se dizer que a narrativa se inscreve nas que têm saído a esquadrinhar as muitas linhas com que se cose o poder em África. Nas circunstâncias actuais, uma vez que parece entrar-se num novo ciclo negando algumas práticas de poderes absolutos e com diferentes graus de violência, dinastias familiares e pouco controlo por parte das populações sobre o aparelho administrativo, esperemos que o livro ajude a fechar esse ciclo iniciado nos anos 60 do século passado, embora não proponha nenhuma linha de acção nem qualquer recado. Não é um tratado sobre política, apenas um romance.

Como o situa em relação à sua obra anterior?
Tem a ver com alguns livros que escrevi no passado, embora talvez seja mais baseado na política como exercício da chegada ao poder e a sua tentativa de manutenção. Não se situando especificamente em Angola, poderá diferir dos anteriores, mais preocupados em descreverem situações sociológicas reais, tentando pontuar momentos da afirmação da identidade nacional e as contradições a elas ligadas. Suponho que o leitor poderá encontrar, no entanto, a mesma preocupação por certos processos e aspirações e também concordará que se pode falar sério com formas que possam fazer sorrir. Uma das armas do pobre ou do fraco é a ironia e a sátira, porque não usar esse instrumento que está à mão de qualquer um ?

Falou de um possível “novo ciclo”, em África. Há, de facto, mudanças assinaláveis, particularmente em Angola?
Pressente-se uma mudança radical em partes importantes do continente para que as instituições do Estado se adequem aos novos tempos e até a alguns pressupostos necessários a uma inclusão mais clara na globalização, como maior transparência na coisa pública, rigor na luta contra a impunidade e a corrupção, melhor governação. Apesar da grande violência que persiste em algumas regiões, de um modo geral pode dizer-se que há diminuição dos conflitos. Angola inscreve-se nessa tendência continental, mesmo se ténue ainda. Será muito cedo para lançar foguetes, mas não se poderá negar haver essa vontade e reconhece-se uma “brisa nova” soprando para as nossas faces. Que as flores tenham oportunidade de desabrochar e que não percamos ( nós continente, nós país) o comboio da modernidade e do progresso, que parece estar ao alcance da mão, é o meu desejo.

Fonte: Jornal de Letras

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