Editorial

Pequenos poderes, grandes ditaduras

Nos ditos pequenos poderes podem estar ocultos grandes ditaduras. Ficamos muito focados nos grandes poderes e nas grandes ditaduras que muitas vezes nem nos apercebemos de certas ditaduras nos pequenos poderes. Creio que as grandes ditaduras começam a ser formatadas ainda durante o período dos pequenos poderes, depois vão crescendo, aumentando de grau ou subindo na hierarquia, vão ganhando o gosto pelo poder absoluto.

Há uns anos trabalhei numa empresa em que, por inerência do cargo, tinha a função de ser uma espécie de mediador entre a direcção da empresa e a comissão sindical. Logo que assumi funções tive como “baptismo de fogo”, um caderno reivindicativo de quase 30 pontos. Percebi que cada direcção da empresa ia gerido o assunto das reivindicações do tal sindicato empurrando o assunto com a barriga, não se comprometendo, adiando decisões para as “calendas gregas”, esperando que a sua comissão de serviço terminasse passando depois o ónus para a gestão seguinte. Era um ciclo vicioso que já vinha de há anos. A comissão sindical acusava a direcção da empresa de má-fé, autoritarismo, postura ditatorial e ausência de profissionalismo por causa de uma situação que já se arrastava há muito. Mas com o andar do tempo fui-me apercebendo que a tal estrutura sindical estava também “contaminada” por alguns dos vícios de que acusava a direcção-geral. Era uma estrutura que não se renovava, avessa a mudanças internas e que tinha uma estrutura também ela autoritária na sua génese. Era um pequeno poder que revelava por si só uma grande e camuflada ditadura. Fui percebendo depois, que funciona assim com grande parte das ditas estruturas sindicais. Escondem-se por trás de uma capa de defensores dos trabalhadores, dizem agir em nome dos trabalhadores e em nome dos interesses desses trabalhadores vão-se perpetuando nos cargos. Acontece o mesmo com os políticos que, eleitos pelo povo, dizem agir em defesa do povo e em nome do povo vão procurando “legitimar” e perpetuar-se nos cargos. Basta fazer um levantamento para perceber há quanto tempo estão nos cargos os líderes das associações sindicais e industriais? São verdadeiros dinossauros perdidos no tempo e nas benesses dos cargos.

Mas os pequenos poderes estão também na atitude do porteiro da discoteca ou do condomínio que sente que tem o poder discricionário de “ditar” quem entra para o espaço sob sua tutela. Estão nos arrumadores ilegais de carros que se sentem com autoridade para colocar barreiras e definir quem pode estacionar uma viatura. Estão numa secretária do ministro, do governador, do embaixador, do PCA ou do director-geral que entende que tem poderes para ditar e determinar quem deve ser recebido, rejeitado, acarinhado ou ostracizado pelo “chefe”. Estão no guarda ou escolta do “chefe”, que numa atitude canina de verdadeiros cães de fila, tornando perfeita a expressão “cão do chefe também é chefe”, também ditam quem deve chegar perto e quem deve ficar bem distante do “chefe”. Estão também no jornalista que depois de ser nomeado para um cargo de chefia se esquece de todos os fundamentos jornalísticos e torna-se o maior apologista da censura.

Hoje os pequenos poderes já se vão impondo na chamada democracia virtual impondo uma certa ditadura de grupo nas plataformas de comunicação nas redes sociais. Observo com algum interesse e preocupação a forma como administradores de grupos de WhatsApp de política partidária, desporto, religião, de actividades profissionais, de família e de amigos de infância vão usando os seus pequenos poderes para impor uma “ditadura” de conteúdos, abordagens e introdução/remoção de membros. A forma como se criam, como se estruturam, se movimentam e manifestam estes pequenos poderes passa muitas vezes despercebida, é dissimulada mas representa um grande perigo.

Todas as grandes ditaduras começam nos pequenos poderes que surgem e acontecem todos os dias e aos nossos olhos, são menos visíveis porque estamos atentos ao grande poder e não reparamos nas manifestações destes pequenos poderes. Escondem-se numa aparente pequenez para ocultar uma ditadura dura e cruel. Estes pequenos poderes revelam-se muitas vezes em grandes e perigosas ditaduras.

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