Um necessário Ensaio sobre a Surdez

Ensaio sobre a Cegueira é um romance do escritor português José Saramago, publicado em 1995 e traduzido para diversas línguas. O romance tornou-se um dos mais famosos e renomados do autor, juntamente com Memorial do Convento e O Evangelho Segundo Jesus Cristo, e fora, sem dúvidas, um dos principais motivos para a escolha dele para o Prémio Nobel da Literatura em 1998. Em 2008, uma adaptação cinematográfica de Ensaio sobre a Cegueira foi lançada e dirigida pelo brasileiro Fernando Meirelles.
A obra de José Saramago narra a história da epidemia de cegueira branca que se espalha por uma cidade, causando um grande colapso na vida das pessoas e abalando estruturas sociais. A cegueira começa num único homem, durante a sua rotina habitual. Quando está sentado no seu carro em frente ao semáforo, este homem tem um ataque, e é aí, com as pessoas que correm em seu socorro que uma cadeia sucessiva de cegueira se forma. Uma cegueira, branca, como um mar de leite e jamais conhecida, alastra-se rapidamente em forma de epidemia. O Governo decide agir, e as pessoas infectadas são colocadas em quarentena com recursos limitados, o que irá desvendar aos poucos as características primitivas do ser humano. A forma da epidemia não diminui com as atitudes tomadas pelo Governo e depressa o mundo se torna cego, mas apenas uma mulher, misteriosa e secretamente mantém a sua visão, enfrentando todos os horrores que serão causados, presenciando visualmente todos os sentimentos que se desenrolam na obra: poder, ganância, obediência, carinho, desejo, vergonha, dominadores, dominados, subjugadores e subjugados.
Saramago mostra, através desta obra intensa e sofrida, as reacções do ser humano às necessidades, à incapacidade, à impotência, ao desprezo e ao abandono. Leva-nos a reflectir sobre a moral, costumes, ética e preconceito através dos olhos da personagem principal. A obra acaba quando subitamente, exactamente pela ordem de contágio, o mundo cego dá lugar ao mundo imundo e bárbaro. No entanto, as memórias e os rastos não se desvanecem.
“Eu quero apenas dizer que nós estamos a ouvir, não somos surdos como alguém dizia aos técnicos da Administração Geral Tributária (AGT) , que eu não gostei nada. Temos de nos respeitar mutuamente”, disse João Lourenço na qualidade de presidente do MPLA durante um acto de massas no pavilhão multiusos do Kilamba. O presidente do MPLA fazia referência aos comentários da empresária e líder associativa Filomena Oliveira, durante um debate na Televisão Pública de Angola, onde ela chamou os técnicos da AGT de “surdos” por manifestarem pouca abertura em ouvir empresários e outros membros da sociedade civil em relação à implementação do Imposto de Valor Acrescentado (IVA) em Angola, cuja data de entrada em vigor estava programada para o dia 1 de Julho, tendo sido adiada para o próximo mês de Outubro. Foi surpreendente e absolutamente desnecessário, o presidente do MPLA ter levantado o assunto durante uma actividade do seu partido. Qual era a necessidade de levantar o assunto naquele acto? Qual era a necessidade de dizer que não tinha gostado da postura da empresária (tendo até omitido o nome de alguém que ele bem conhece)?
João Lourenço não precisa de gostar ou não gostar das posições de empresários nos debates públicos na comunicação social, ou se não gosta não precisa de anunciar esse seu desagrado numa actividade do seu partido. Precisa é de respeitar. Precisa, sim, de ouvir, repensar, ajustar posições, pois censurar ideias, opiniões ou liberdades não fica bem a quem defende o Estado democrático e de direito. Foi um retrocesso no tão propalado discurso de afirmação da liberdade de expressão e do contributo das chamadas “forças vivas” da sociedade civil. Não tarda voltaremos ao tempo em que o discurso ou debate público ficava condicionado a uma questão prévia: “Será que o Chefe vai gostar?” O seu comentário pode ser interpretado como uma ameaça velada à liberdade de expressão, quando se deve contar com a contribuição de todos cidadãos neste processo de afirmação da democracia. O Estado não pode ser um “cego” que vê e finge não enxergar; um “surdo” que ouve e finge não escutar; um “mudo” que fala e prefere ficar calado. Ser intolerante pode ser uma “intolerável deficiência” do Estado.
Defendo que a livre expressão de diferentes pontos de vista não se compadece com deselegâncias e defendo debates com nível e elevação, mas muitas vezes no calor do debate de ideias exaltam-se os ânimos e escapam as palavras. A governação dos povos tem sempre presente a marca dos governantes e muitas vezes são governantes que endurecem o discurso, chegando muitas vezes desvalorizar os seus concidadãos. José Eduardo dos Santos, em visita aos EUA chamou “pasquins” aos jornais privados feitos em Angola. Mais tarde falando para imprensa alheia, no caso a portuguesa, chamou “frustrados” a um grupo de jovens que organizavam manifestações pelo país, reivindicando direitos consagrados constitucionalmente. Recordo que por duas vezes em terra alheia e ao lado de dois Presidentes, João Lourenço já adjectivou concidadãos seus de “malandros” e “marimbondos” e não me recordo de alguém com funções públicas vir dizer: “Não gostei!” Em Março de 2017, na qualidade de vice-presidente do MPLA e candidato do mesmo partido às eleições daquele ano, João Lourenço em visita a Moçambique e durante um encontro na sede da Frelimo com Filipe Nyusi, líder do partido que governa Moçambique desde 1975, terá dito que “O MPLA e a Frelimo devem unir-se para não serem vencidos pelos ‘malandros'”, numa alusão aos partidos da oposição em Angola e Moçambique: UNITA e Renamo. “A nossa força está na nossa unidade, se nós não formos unidos, os malandros vão-nos vencer”, disse na altura João Lourenço. Em Novembro de 2018, no primeiro dia da sua visita de Estado a Portugal e durante uma conferência de imprensa com o seu homólogo português, Marcelo Rebelo de Sousa, na Sala das Bicas do Palácio de Belém, João Lourenço terá utilizado a palavra “marimbondos” para se referir a um grupo antigos dirigentes e governantes que tecem críticas à sua governação. Estas expressões ditas por João Lourenço, em terra alheia e naquele contexto, embora enquadradas num quadro de liberdade de expressão, certamente não terão sido elegantes nem agradado aos visados “malandros” e “marimbondos”, mas não houve um “não gostei” público dos mesmos. Um Presidente que também recorre a adjectivos pejorativos para qualificar cidadãos seus (sejam adversários políticos ou opositores internos) quando está em terra alheia, não fica bem na fotografia quando surge em público a criticar aqueles que o fazem em debates internos. Os tempos são outros e requerem também novas abordagens sobre determinados temas e factos. Todo o pronunciamento de líderes políticos, que configure uma espécie de censura ou limitação de liberdades, pode cair junto dos cidadãos como ideia de uma ditadura velada. Espero que o pronunciamento não “iniba” os órgãos públicos de comunicação de abordarem temas de interesse público e que, depois deste Ensaio sobre a Surdez, a empresária Filomena Oliveira e a associação que representa não estejam literalmente afastados da participação no debate público ou de outras iniciativas promovidas pelo Estado, porque tal ensaio terá provocado um “não gostei” presidencial.
Este necessário Ensaio sobre a Surdez que Filomena Oliveira fez, no debate com os técnicos da AGT, terá certamente influenciado no adiamento da implementação do IVA em Angola. O que ela terá levado ao debate são preocupações de vários colegas da associação empresarial. É importante que o Estado e as suas instituições não sejam contaminados por uma surdez epidémica. Não queremos um Estado surdo, cego e mudo com os seus cidadãos. Também não gostamos quando o nosso Presidente fica aborrecido por um cidadão, em nome do interesse público e no espaço público, usa da sua liberdade de expressão e opinião, liberdades essas que cabe a ele promover, estimular e defender. Porque no dia em que o povo decidir expressar-se sobre aquilo que realmente não gosta em relação ao estado do País e da sua governação, podermos ser conhecidos como o país do: “Não gostei!” O país precisa de avançar e não de ficar estagnado nestes debates sobre malandros, marimbondos e surdos, senão, não tarda, ainda aparece aí alguém a tentar convencer o povo de que todo o marimbondo é surdo e que todo o surdo é malandro.
A governação também está nos detalhes e nestes detalhes percebemos que, ao longo dos tempos, fomos tendo em Angola uma governação que em vez de comunicar frontalmente foi dando “toques”, que em vez de falar foi mandando “bocas”, que em vez de ouvir foi “ignorando com sucesso”. A negação ou a desvalorização do próximo é praticada ao mais alto nível (basta ver os casos dos pasquins, revoltados, malandros e marimbondos a que já fiz referência aqui). A negação é um mecanismo de defesa contra factos demasiados dolorosos de suportar ou aturar, negamos o próximo porque não só porque não concordamos com a sua opinião mas na maior parte dos casos porque não reconhecemos ao próximo o direito de nos contrariar ou de tomar uma posição diferente da nossa. O indivíduo não conta, só as estruturas interessam. Mas errar é humano e todos erram, sejam eles jornalistas, empresários, funcionários públicos, técnicos da AGT, Presidentes e outros. “Só não erra quem não trabalha”, dizia um estadista angolano de “inalcançável” visão estratégica e hoje radicado num país da Península Ibérica.
Fazendo também recurso à analogia do futebol, termino deixando uma frase muito comum nas lides da bola cá em Portugal: “Bonito, bonito, é dar o litro e não pôr as culpas no gajo do apito.”