Uma novela chamada: Lawfare Angola

Lawfare é a junção das palavras law (lei) e warfare (arma de guerra), Lawfare passou, assim, a referenciar o uso da lei como arma de guerra. É o que se pode chamar “guerra jurídica” ou uso do direito como arma política para derrotar governos, substituir regimes políticos. Grosso modo, a lawfare é uma guerra travada por meio da manipulação das leis e da opinião pública para atingir pessoas que foram eleitas ou declaradas como inimigos políticos. “É a estratégia do uso da lei como substituto dos meios militares tradicionais para alcançar um objectivo operacional”, disse em 2011, o coronel da Força Aérea norte-americana, Charles Dunlap. Lawfare é um conceito que apareceu na década de 70 num contexto de Guerra Fria.
No Brasil, os documentos obtidos pelo jornalista Glenn Greenwald e a sua equipa confirmam a desconfiança de vários especialistas que já consideram a Operação Lava Jato, um exemplo daquilo que pode ser chamado de “political justice“, expressão usada pelo jurista alemão Kirchheimer para falar do uso de procedimentos judiciais para fins políticos. O então juiz Sergio Moro (agora ministro da Justiça) surgiu como um super-herói nacional no combate à corrupção e à impunidade, num processo que teve por objectivo a condenação do ex-Presidente Lula da Silva e o seu afastamento das eleições presidenciais que colocaram Jair Bolsonaro no poder. Na Argentina, a ex-Presidente Cristina Kirchner é a favorita para vencer Mauricio Macri nas próximas eleições presidenciais, mas recentemente um juiz determinou a abertura de um novo processo por corrupção contra a ex-Presidente da Argentina. A viúva do também ex-Presidente Néstor Kirchner responde a outros sete processos na Justiça. Cristina alega ser vítima de uma perseguição judicial orquestrada pelo actual Governo, liderado por Mauricio Macri. No início deste mês e durante um pronunciamento realizado na Cúpula de Juízes Pan-americanos sobre Direitos Sociais e Doutrina Franciscana, o Papa Francisco disse que tal prática jurídica representa um risco para a democracia dos países, “o Lawfare, além de colocar a democracia dos países em sério risco, geralmente é utilizado para minar os processos políticos emergentes e incentivar a violação sistemática dos direitos sociais. Todos estamos familiarizados com o julgamento antecipado pelos media“, disse Francisco. O pronunciamento ocorreu uma semana após o Papa Francisco ter enviado uma carta em solidariedade a Lula da Silva.
Perseguição política por meio da Justiça é o elemento-chave em tudo isso. O Lawfare tem sido o instrumento de intervenção externa no cenário político de alguns países (os casos do Brasil e da Argentina citados anteriormente), com ajuda de operações mediáticas paralelas permitindo um julgamento antecipado da imprensa com objectivo de formar e formatar a opinião pública, criar indignação social e destruição da imagem pública. A prática do Lawfare é inerentemente negativa, é o oposto da busca de justiça. O que se faz é a apresentação de processos judiciais frívolos e mau uso de processos legais para atacar, intimidar ou frustrar adversários políticos. Usa-se e abusa-se do sistema legal e dos meios de comunicação social para criar a tal indignação social e levantar a opinião pública contra os inimigos políticos e económicos declarados ou previamente seleccionados. Usar abusivamente da lei como “arma de guerra” é utilizar (ou abusar) do direito como substituto dos tradicionais métodos militares para obter sucesso num conflito. Por exemplo, na guerra, a estratégia de invasão e conquista de território do inimigo é um dos principais eixos da dominação. No Lawfare, a tal conquista de território é substituída pela influência, pela ingerência e por recomendações do poder político e os julgamentos antecipados feitos pela comunicação social.
Tácticas ou práticas muito comuns no Lawfare começam a ser observadas também com alguma preocupação em Angola: manipulação do sistema legal com aparência de legalidade para fins políticos; abuso do direito para danificar ou desacreditar os adversários; promoção de acções judiciais para descredibilizar os adversários; tentativas de influenciar negativamente a opinião pública; a utilização da lei e dos meios legais para obter publicidade negativa, promoção de desilusão e indignação social (nestes casos a comunicação e as redes sociais prestam uma importante ajuda); acusação das acções dos inimigos como imorais e ilegais. Em nome de uma agenda de moralização do País, de combate à corrupção, ao nepotismo e à impunidade, facilmente o sistema judicial consegue “legitimidade” para agir politicamente sempre estimulado ou sob “recomendação” dos tais poderes políticos (vide caso Moro no Brasil). Começa a haver entre nós um certo activismo judicial que é preocupante onde surgem juízes e procuradores superstars, que começaram a ganhar gosto pelos holofotes da imprensa, pelas capas e pelos títulos de jornais e até por revistas cor-de-rosa. O poder político vive, convive e alimenta-se do populismo; é uma prática comum e é assim que manipulam as massas em busca dos votos que lhes permitam a manutenção no poder. Quando o populismo atinge juízes, procuradores e tribunais o quadro é mais preocupante porque potencia o surgimento de perigoso “populismo judicial” que muitas vezes não está ao serviço da Justiça mas sim de interesses políticos ou corporativos.
Facilmente se percebe que surgiu em Angola um novo e forte grupo com interesses políticos e económicos que usa a lei, a justiça e os tribunais para impedir ou punir a acção de outros grupos anteriormente dominantes. Começa-se a ficar com a ideia de que a Procuradoria-Geral da República (PGR) está, também ela, no meio desta guerra de grupos e começa a ser “forçada” a uma acção que não se limita ao campo do estritamente jurídico e avançando perigosamente para o campo da política, ou, mais grave, é voltar a ver a instituição de novo metida naquilo com que esteve sempre conotada no tempo do “outro senhor”: a política de grupos. No comunicado feito pelo Serviço Nacional de Recuperação de Activos da PGR divulgado na passada quinta-feira, 13 de Junho, sobre o financiamento de empresas privadas realizadas com financiamento de fundos públicos, facilmente se percebe que os timings da sua divulgação na comunicação social pública, nomeadamente na TPA e RNA (logo nos serviços noticiosos das 20h) são calculados e programados, primeiro para chegarem em horário nobre e atingir um público maior; segundo para não dar hipótese de contraditório aos acusados, criando a tal indignação e o ódio social aos tais acusados; e, por fim, fazer da “presunção de culpa” uma regra e a presunção de inocência uma excepção. Uma destas empresas (a Geni do general Leopoldino Fragoso do Nascimento “Dino”) teve de usar as redes sociais para partilhar comprovativos de pagamento da dívida ao Estado com o objectivo de “diminuir o impacto” da divulgação do comunicado pela comunicação social pública. A responsável do Serviço Nacional de Recuperação de Activos lá veio depois com o discurso do “bom pagador”, para minimizar os danos e dizer que a Geni “estava a colaborar e a ser um honesto pagador”, mas a primeira impressão acaba por ficar sempre. Este Lawfare é uma estratégia eficiente, menos cansativa e dispendiosa, desgasta a imagem e arrasa a credibilidade dos indivíduos. Nada melhor do que aniquilar adversários políticos usando esta via bastante destrutiva, ainda que legal e com um forte suporte mediático. Quem tem mais poder político, económico e mediático leva mais vantagens neste processo de perseguição política por meio da justiça.
O Caso Fizz, que partiu de uma denúncia anónima de Luanda para o Ministério Público envolvendo o nome do ex-vice-presidente de Angola Manuel Vicente, num caso em que ele nunca chegou a ser constituído arguido e que resultou num “irritante” político e diplomático entre Angola e Portugal; o caso Burla à Tailandesa, que encheu capas de jornais, abriu noticiários, promoveu acesos debates na comunicação social e nas redes sociais, teve honras de directos televisivos, vindo depois acabar na absolvição de Norberto Garcia. Os interrogatórios mediáticos dos deputados Higino Carneiro e Manuel Rabelais e agora o mais recente julgamento do antigo ministro dos Transportes, Augusto Tómas podem ser interessantes episódios de uma novela chamada: Lawfare Angola.
A “morte política” dos artistas acontece ao longo dos vários episódios, numa teledramaturgia bem angolana, mas com inspirações numa telenovela brasileira bem conhecida de todos. O casting dos actores já foi feito, o enredo começa a ser desvendado, a banda sonora é de uma das Secretas, a produção está a cargo do poder judiciário e a realização é do poder executivo.
Nós, o povo, somos os telespectadores atentos e assíduos que se emocionam com as cenas de amor e ódio que esta telenovela proporciona, mas também rimos e batemos palmas com alguns dos momentos de humor que esta superprodução nacional promove.
A novela chamada: Lawfare Angola, está no ar e as cenas dos próximos capítulos prometem.