Cronistas

O arroz que nunca acabava

Nesse dia, eu tinha acabado de chegar à minha nova mutamba lá do bairro, a Placa dos Aposentados. Quer dizer, esta é apenas uma proposta minha, que parecia já ter obtido consenso da malta toda, mas me enganei «mbora», por quanto, ontem mesmo, surgiu o Dj Profeta na oposição a sugerir que ficaria melhor se denominássemos o recinto como sendo a «Placa dos Traiçoeiros».

Não vou entrar em pormenores quanto a isto, até porque é assim que vai merecer uma crónica à parte mais posso adiantar que não gostei nada que o gajo quase me acusasse directamente de ser um «PC» da bófia ali destacado para controlar as conversas dos mizangalas que frequentam a mutamba uns mais, outros menos. Conversas de traiçoeirice. Posso também adiantar que, não obstante esta oposição emergente, a esmagadora maioria da malta me quer como presidente do conselho de administração da instituição, cargo a que recusarei certamente, por achar que é uma gozação ser indicado para chefiar a administração de coisa nenhuma.

Ora, como ia dizendo, estava a acabar de chegar quando surgiu a entrada da rua a vizinha Filomena toda descabelada bem encardida de poeira e chorosa. Vinha despojada da sua tralha habitual de vendedeira de esquina, o que me deu impressão de que algo de anormal se tinha passado com ela. E tinha mesmo: Os heróicos fiscais da administração distrital, apoiados por agentes policiais, haviam ficado com o seu negócio de «conxas» de galinha, mas sem antes lhe aplicar uns bons pontapés da bunda.

Este é filme quotidiano para quem, como eu, mora nas cercanias do mercado dos congolenses. É ver fiscais e policiais atrás das pobres senhoras, a quem recebem os bens e mercadorias sem contemplações, enquanto elas vão resistindo como podem, em defesa do negócio que lhes garante a sobrevivência, sua e dos seus. É uma guerra já antiga, que parece sem fim. Pelo menos, os resultados assim indicam: as autoridades limpam uma zona, mais elas surgem noutra e tudo (berridas e despojamentos) repete-se, como se uns e outros estivessem a brincar, embora seja sabido que o jogo é muito dramático pois até mortes não têm faltado. Pelo o que se vê, violência pura e dura não é a solução. Aliás, isto parece aproveitar apenas a alguns fiscais e policiais que quase sempre descaminha os produtos que apreendem, quando não os destroem sadicamente. Há até algumas figuras já muito famosas por isso mesmo, como um temido «Tio Natali».

As zungueiras, coitadas vão resistindo como podem, incluindo o recurso a kimbandeiros, quando muito, por mera vingança, depois deste fiscal ou daquele policial ter desgraçado a vida a esta ou àquela, a fazer fé nas histórias que o Mauro, o único mulato que é membro da placa contou.
Por tanto, as conversas que se seguem são da inteira responsabilidade desse mulato:

1-O fiscal chegou todo feliz a casa. Tinha conseguido um saco de 50 kg de arroz. Triunfante, disse a mulher para distribuir pela família toda e por alguns vizinhos também. Vários dias depois, estimando que o saco já se tivesse esgotado, pergunta à esposa como é que as coisas estavam e para seu espanto ela diz que este continuava cheio, embora não se cansasse de distribuir o arroz pela vizinhança toda. Só podia ser feitiço, disse a esposa. É aí que o homem se lembra da praga que a zungueira lhe rogara. «Vais ver seu sacana vais ver! Só se eu roubei esse arroz», gritara ela quando se viu despojada do seu negócio.

2-O homem chegou bem cansado a casa. O dia fora extenuante. Porra essas zungueiras dão trabalho. Já nem se lembrava quantos pontapés andou a distribuir durante as rusgas desse dia. Deita-se no cadeirão e chama o filho mais velho para que lhe descalça-se as botas. A do pé esquerdo sai sem dificuldade nenhuma. Mas, a do pé direito nega-se decididamente. «Pai, essa bota não está a sair», diz o miúdo. O homem dá um safanão ao filho e decide tratar do assunto ele próprio. Mas, por mais que lutasse, desconseguiu de tirar a bota do pé direito, o que mais dera pontapés naquele dia.
Bom segundo o Mauro Laton, cada um deles buscou um xiranga para desfazer o feitiço, tanto o fiscal que roubou o saco de arroz como o outro que andou a bicar as zungueiras a torta e a direita. Para azar deles, ainda segundo o Mauro , os dois xirangas coincidiram num ponto:

Só podiam desfazer o feitiço a pedido de quem os encomendara, isto é, as duas zungueiras prejudicadas.
E como uma desgraça nunca vem só, os dois fiscais não sabiam onde encontra-las. Segundo ainda o Mauro Laton consta que, desgraçadas, elas terão decidido regressar a terra natal, em Ndalatando, pelo que é possível que o saco de arroz ainda continue cheio na casa daquele e que este não tenha já conseguido tirar a bota do pé direito.
Rimo-nos a perder mais é claro que eu não acreditei em nenhuma destas histórias. Aliás, se elas fossem verdadeiras já não veríamos nenhum fiscal ou policia a bater numa zungueira.

Nota: Há aí a história de uma zungueira que decidiu enfrentar os fiscais, como se pretendesse que eles levassem o seu negócio. Uns falam que estava a vender «conxas» mas outros falam em frutas. A comida estaria envenenada. Ninguém sabe dizer quais foram os estragos. Nem o Mauro Laton.

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